Farrapo Mítico: outros desdobramentos

por Filipe Rossi

Mito Fundador:

São nos mitos fundadores que moram o alicerce da linguagem, ou seja, da capacidade humana de significar o mundo. Talvez sem o Homem o mundo não pudesse ser mundo. Sim! quem o significaria? Quem nomearia o que nele há?

Os mitos são precisamente as narrativas que dão conta de inaugurar na arquitetura de nossa linguagem como humanos civilizados a base de todo um conhecimento histórico, biológico, psíquico e precisamente misterioso. Caso nossos antepassados não desbravassem a capacidade das palavras gerarem estados mentais que significam atos, eventos e modelos, não poderíamos nos reconhecer como Humanos do século XXI. Talvez até o tão proclamado EU, não existiria, não edificaria suas vontades, seus desejos aterradores. É lógico que linguagem não se resume a uma cadeia de palavras. Linguagem é antes de tudo um jogo. E todo jogo possui suas regras, e lances orquestrados de modos fantásticos.

É basicamente neste contexto que o mito fundador é especial: Ele é um jogo narrativo, riquíssimo em imagens e possibilidades sonoras que nos envolve numa corda rica em curvas emocionais. Somos presas fáceis deste agrupamento de palavras tão poderosas.

Quer fazer um teste? Leia o Gêneses da bíblia judaico-cristã! Será engolido ferozmente por palavras criadoras do mundo! E não é necessário crer. Obrigatoriamente o jogo posto fará você criar aquele mundo para si.

O mito fundador é esse monstro que devora-nos, e ao mesmo tempo nos transforma, nos programa, e assim reconhecemos nosso estado de marionetes na mão do Mysterium. Aquilo que está para além do jogo-de-espelho da linguagem.

Elementos narrativos:

Para tudo que existe há necessariamente dois elementos originais fundidos: TEMPO-ESPAÇO!

E a partir daí a maravilha acontece!

Tudo é possível a partir de então. Podemos narrar onde, quando, quem, como! – A Circunstância tão querida por Stanislavski. E o velho russo tinha razão. O milagre narrativo acontece. Tudo pode brotar. As palavras corporificam-se tornando-se entes mentais. O milagre da linguagem!

A engenhosidade dos poetas levaram-nos ao labor da metrificação do que era narrado. Ou seja, compartimentar a narrativa, sem que esta perdesse sua capacidade de unidade. Novamente Stanislavski compreende muito bem e introduz dois novos conceitos: Acontecimento e Tempo-Ritmo. O primeiro criará pontos-vetores na narrativa, o segundo alterará o grau de intensidade destes pontos, dando origem a curva dramática.

Infelizmente os desenhos propostos na curva dramática não se alteram há muito tempo: peças teatrais, filmes, novelas, séries de tv, todas utilizam o mesmo modelo narrativo. Um modelo eficiente para o entretenimento, mas que pouca utilidade possui para o labor artístico. Assim os mitos enfraqueceram-se e perderam sua capacidade de palavra-corpo!

Mesmo Brecht, contrariando esta curva e instaurando a narrativa de fragmentos e exposição, a linha narrativa foi compartimentada por Acontecimentos que evocavam a palavra como apenas desencadeadora de um processo reflexivo determinado por aspectos sociais. Novamente a palavra-corporificada, a palavra-evocação sumiu da narrativa não alterando estados mentais, e permitindo o humanos reprogramar-se.

Artaud é o moderno que nos atenta a esta perda narrativa. E mostra que toda a metafísica em anos de filosofia e teologia danificaram as palavras elevando-as ao estado de entidades acima do Homem, não-físicas, meta-físicas, sendo que a palavra é tão física quanto nossos corpos. Possui propriedade físicas calculáveis: altura, intensidade, timbre, duração, ou seja, som capaz de produzir e reverberar em nossas mentes produzindo estados mentais outros, que não somente a capacidade cognitiva.

Os textos artaudianos foram tomados como grandes utopias de um louco preso em suas sessões de eletrochoque. Mas quando Grotowski permite-se encarar o mito novamente como força de um Mysterium e transforma a narrativa no jogo de apoteose e derrisão, o teatro e a dramaturgia como um todo começa a considerar os escritos de Artaud.

Abre-se o campo do Pós-dramático. Justamente quando a curva dramática clássica é re-significada, e começa haver rupturas no modo de narrar. Mas sou partidário da continuação existencial da narrativa. Onde há humanos há narrativa!

Hoje no Brasil temos a oportunidade de encontrar um trabalho extremamente de vanguarda produzido por Roberto Alvim. Este debruça-se perante o velho e inaugura o novo após muito estudar, e nos oferta uma nova dramaturgia intitulada pelo próprio autor de “Dramáticas do Transumano”. Onde encara a capacidade transitória da linguagem, e o efeito que esta causa no cérebro humano, ou melhor, em cada subjetividade que se põe em contato com seus espetáculo. E toda a potencialidade dramática só pode ser alcançada no ato teatral, em cena.

Nestes últimos momentos da história do teatro encontramos a potência da palavra-corpo existentes nos mitos. Porém, há quase que um menosprezo ao ato de narrar!

Base da Linguagem:

Como já dito, a base da arquitetura linguística do ser humano está no mito fundador. O mito é a narrativa que origina a compreensão de algo ainda não explanado pela mente humana, resolvendo momentaneamente a curiosidade sobre sentimentos, ações, eventos, entre outros. Ora, o que importa aqui é o termo narrativa. Mito = Narrativa!

Mas os mitos fundadores, estas narrativas fundadoras, programaram-nos do modo que podemos nos reconhecer como Homens do século XXI. Mas ainda julgamos necessário encontrar uma outra possibilidade de humanidade que resolva momentaneamente a curiosidade sobre sentimentos outros, ações outras, eventos outros, e assim vai…

Surgem sentenças petrificadas:
Há narrativas demais que se repetem em forma e conteúdo;
Há modelos demais, e todos já estão repetidos;
Há a sensação de que o Homem não alterou-se como espécie dotada de linguagem;
Há estabelecimentos morais que não dão conta da vida interpessoal, até mesmo subjetiva, causando neuroses, doenças sociais e pessoais;
Esta mesma moral bloqueia a capacidade humana presente na linguagem de alargar a experiência cósmica;
Estamos presos em nossas estruturas meramente pessoais e sociais, subjetivas e intersubjetivas;
Mas ainda paira na mente humana fragmentos linguísticos para além das experiências comuns, onde habita o que apenas conseguimos nomear como sendo o Mysterium.

Neste contexto aterrador surge o que aqui propomos como Farrapo Mítico. Este termo é forjado com base na ação de narrar. Uma verdadeira dramaturgia nova rasgaria o que é velho e após a embriaguez do ato começaria a reposicionar elementos-chaves, e experimentar e experienciar os efeitos que estes reposicionamentos são capaz de produzir no humano.

Assim, o teatro seria o local de encontrar o velho e produzir o novo, num ato de hibridismo. Construiríamos novas bases linguísticas capazes de alargar a experiência humana, não somente social e/ou subjetiva, mas sim, cósmica.

Ator, o Sacro-Ofício:

Com as paredes do teatro erguidas devemos por em cena essas utopias dramáticas-narrativas. Mas ainda falta-nos quem irá realizar. Devemos pensar a função do ator neste contexto novo-velho.

O ator aqui é o individuo que deverá doar-se por completo. O ser humano, assim como Yuri Gagarin, a viajar pelo espaço pré-visto, porém, desconhecido.

Deverá então, sacrificar sua subjetividade para adentrar as portas do Velho e do Novo, da vida e da morte. Estas duas portas deverá ser o seu objetivo Cruel. Mas é justamente em sua subjetividade que habitam as chaves destas portas.

Uma vez iniciado este intento e trabalhado arduamente na desintegração de si, estará apto a recriar este processo perante outros humanos.

A encenação então, aparece como um ritual de encontro, onde a narrativa em farrapos míticos faz com que o presente viva experiências subjetivas intensas, e que ao término do ritual estejam todos amalgamados na condição humana de experiências individuais intensas ainda não vividas por seres humanos, até então, dando origem a um novo espaço humano de conhecimento e experiência.

O ator tem por tanto o ofício sacro de expandir a experiencia humana, sendo que em Laboratório deverá reproduzir em si estes mecanismo em sacrifício, sacro-ofício.

Ethos, à procura dos outros em si:

Isto requer uma postura ética do ator. Não moral! Ética. É um caminho a ser trilhado, mas para trilha-lo é necessário dar o primeiro passo à procura dos outros, do universo, do cosmos, em si. E neste momento de investigação deverá romper com a noção do EU edificado socialmente, afetuosamente, cognitivamente. E este é o sacrifício.

Este ethos é o superobjetivo do ator em sua existência como artista. E é com ele que poderá irmanar-se com todos os outros atores, com todo o público, com a humanidade inteira, em busca do mysterium que mora atrás do jogo-de-espelhos da linguagem. Para empurrar este espelho para além, e ampliar a experiência humana devemos vasculhar o velho, ousar proclamar o novo, e experimentar a delícia de ser uno e ser versificado.

Universo.

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