Arquivo da categoria: Projeto: O Fio das Gerações

Ham[let] – Deixa-me ser éter, carne e ossos

por Isadora Aragão

“Mostra-me como vês Hamlet e eu te direi quem és.”
 Ludwick Flaszen
Esta frase bastante provocativa de Flaszen esta inserida num ensaio intitulado “Hamlet no Laboratório Teatral”, em que o autor tenta nos transmitir as dimensões do contato de Grotowski e seus atores com o texto de Shakespeare. A partir deste ensaio, percebemos que devido ao modo com qual o grupo vinha trabalhando houve uma verdadeira necessidade de se travar um diálogo entre a Inglaterra do Século XVII e a Polônia do Século XX. Isso porque, para eles só pareceu justificável retomar Hamlet se fosse para tratar da realidade que os cercava.
No entanto, isso não significa dizer que “modernizar” o plano de fundo da história tenha sido a maior preocupação do diretor. Pelo contrário, sua ida a este texto se deu muito mais como um estudo do que como pretensão de representação para um público e Hamlet, devido a seu caráter universal, foi para Grotowski uma sólida ponte para àquilo que realmente desejava: o desnudar dos atores diante de si mesmos.
Vemos então, o jovem Hamlet diante do espectro de seu pai e notamos que nesta figura reside para ele tudo que há de mais nobre, bom e belo.  E de tão sublime, se faz etérea essa imagem, que não é outra senão a da mais pura fé. Mas para o que olha Hamlet? Para seu pai? Ou para si mesmo? Em quem mora, enfim, a coragem pela qual ele tanto tem admiração? Aí esta a graça e genialidade desse jogo espectral, pois aquilo que Hamlet vê fora de si é a primeira imagem que faz de si mesmo. E esta para Grotowski, poderia ser considerada uma primeira porta aberta pelo ator para adentrar-se.
Então, tomado pelo calor do contato com o próprio espírito é que o jovem Hamlet vai descobrindo-se também carne, já que o desejo de perder-se em si mesmo para se reencontrar fora despertado. Desse modo, a falsa loucura foi a “desculpa” que precisava para poder ser cada vez mais impulsivo e visceral, para que tudo nele assumisse, sem o peso da culpa, formas de violência. Nesse sentido, vale lembrar que, até o amor que tinha por Ofélia acabou se desdobrando em ofensas e que foi sob o comando dessa força que ele elaborou a cena dos atores para confrontar seu tio.
Porém, quanto mais profundamente Hamlet adentra a própria carne, mais dela se afasta para se aproximar da espinha dorsal da existência humana. Foi assim que, diante de uma cova, tomando na mão um crânio humano pode enxergar-se também perecível. E isto significa que a busca por si mesmo, através deste adentrar-se, resultou no encontro com todos os homens.
Somos espírito, carne e ossos. Essa é nossa tripla condição Hamlet-humana. Basta que desejemos nos rasgar e todo homem será o uni-verso.

E se restar a pergunta: Que é Hamlet? Hamlet é isto que nos pergunta o que Hamlet é.

Medeia: Culpa de quem?

por Isadora Aragão

Quando Medeia lançou mão de todos os seus recursos para que Jasão voltasse vitorioso à Grécia, tinha como motivação a perspectiva de casar-se com o homem que amava. Por isso foi que se doou por completo, fazendo uso de toda sua sapiência em favor das lutas de um estrangeiro.  De modo que, se não fosse de sua vontade desposar Jasão, jamais teria sido capaz de cometer danos à seus próprios familiares e pátria.
Assim, não erramos quando dizemos que em tudo que esta mulher fez não houve um só ato desinteressado, mas que, pelo contrário, todos eles visaram uma mesma coisa: um juramento feito perante os Deuses que lhe desse direito ao mesmo tempo a um leito e a uma pátria. E foi exatamente o ela que conquistou.
No entanto, tal juramento, mesmo tendo sido lançado aos ouvidos dos Deuses, saíra de boca humana e, por isso, continha algo de contraditório, falho e imperfeito. Então, quando a lógica desafiou Jasão, ele não titubeou em fazer uso da razão para conseguir o que queria, mesmo que isso lhe custasse a ruptura de um juramento sagrado e a separação da família já erigida. E foi assim que ele, para casar-se com a filha do Rei Creonte, deixou Medeia não só sem esposo, mas também sem pátria.
Então, podemos nos perguntar: é possível ter pena de Medeia?
Num primeiro momento, podemos responder que sim e nos deixar levar pelos lamentos colocados na boca da personagem por Eurípedes.  Afinal, como não ter pena de uma mulher que se doou completamente em nome do sucesso de um homem que a retribui com o abandono e desterro?
No entanto, nos contentando com tal leitura deixamos de lado o fato de que a própria Medeia não desejaria ser objeto de pena. Pois, caso aceitasse essa condição teria se resignado diante do casamento de Jasão, viveria com o apoio moral dos habitantes de Corinto e acabaria por felicitar a abastança real de que poderiam beneficiar-se também seus filhos.
Entretanto, a ela não interessava nenhuma fortuna que proviesse de seu sofrimento, tampouco aceitaria ser humilhada perante todos, convivendo pacificamente com o triunfo de seus inimigos. Assim,  vingou-se para mostrar que era capaz de causar o mesmo sofrimento que haviam lhe causado e nesse sentido, não lhe bastou que Jasão fosse considerado culpado por todos. Pelo contrário, foi preciso fazer com que ele passasse pela mesma sensação de perda que ela passara e foi por isso que lhe tirou a futura esposa, para que também ele padecesse sobre um leito vazio.
A vingança é ainda mais cruel nessa versão da história, já que de acordo com ela Medeia matou  também os próprios filhos, afirmando não querer deixa-los a mercê de estranhos que vingariam neles o assassinato do Rei e sua filha.  No entanto, não podemos deixar passar que se para ela o culpado por todas as atrocidades que se vira  obrigada a cometer até então era Jasão, não se sentiria culpada pela morte dos próprios filhos. Afinal, Jasão iniciara toda a catástrofe, rompendo o juramento que fizera. Dar cabo de sua prole significava somente levar às últimas consequências aquilo que já estava começado, desligar-se de vez do passado para poder seguir em busca de uma novo leito e de uma nova Pátria, já prometidos por Egeu.
Portanto, se não nos cabe considerar Medeia uma coitada, não nos cabe também julga-la como um monstro por matar os próprios filhos. Ela ocupa simplesmente esse lugar da mulher capaz de privilegiar seus interesses, aproximando-se do homem representado em Jasão que abandona o leito da esposa para realizar anseios pessoais, ao invés de manter o juramento aos Deuses.
 Na verdade, o que nos confunde é que ambos são movidos quase que por uma mesma força, ambos são capazes de abandonar antigos juramentos e seguir adiante em nome do que desejam e levar as decisões às últimas consequências. E então, de quem é a culpa? Dos desejos humanos! Mas, que foi feito da vontade dos Deuses?

Da Mãe à Mãe

por Isadora Aragão
 
Do nascimento à morte
 

Uma mulher se parte no parto. Despede-se com dificuldade da parte de si que se transmuta num ser novo.  Rompem-se os laços, corta-se o fio e nascem mãe e filho. Nunca mais ela será a mesma. Cindiu-se e algo sempre lhe faltará. Quanto ao filho, apartado da mãe, tampouco encontrará abrigo, seguirá por caminhos tortos numa busca incessante pela completude inicial que se perdeu. Perdido ele permanece, num tatear febril e insistente até o corpo pesar e é com pesar que ele decide parar. Seus pés, servos mais dedicados em vida, rebelam-se e exigem descanso. O homem teima, mas por mais que o faça não resiste à tentação. É preciso entregar-se, usar o receptáculo que, desde o dia do nascimento, cavou para si mesmo no ventre do mundo.

Da morte ao nascimento
 
Para que Édipo não errasse, Jocasta cometeu o mais infeliz de seus erros: tentou imobilizar seu filho, grampear-lhe os pés e atira-lo nos braços da morte. Porém, o que ela não percebeu é que neste ato, concentrada em desfazer a funesta trama tecida pelos Deuses, se esquecera de cortar o mais íntimo fio que a unia ao filho: o fio da vida. Assim, despediu-se de sua criança, pensando driblar o destino ao usar a morte a seu favor e não se deu conta de que, devido à ligação entre eles, seu plano falhara. Pois, Édipo às portas do Hades fora impedido de prosseguir: Como poderia morrer aquele que não nascera?
                Levado então a Corinto, Édipo viveu a ilusão de ter nascido noutros pais, noutra pátria e o abrigo oferecido por Mérope e Políbio por alguns anos impediu que a questão de sua origem tivesse relevância. No entanto, os Deuses eram ardilosos e a paz conferida a Édipo, temporária. Portanto, não demorou para que sussurros jogados ao vento chegassem à seus ouvidos e colocassem em cheque a solidez das paredes do lar em que ele vivera até então. Um anúncio grotesco fora proferido e nada restou a Édipo a não ser abandonar Corinto.
Sem que percebesse, eram as amarras insistentes e invisíveis da terra natal que o levavam de volta ao berço e o sinuoso caminho a ser percorrido por esse homem que desde o princípio carregara as marcas da incerteza nos pés acabou por desembocar na decisiva encruzilhada do Eu.  Ali, seu verdadeiro pai, Laio, olhou-o nos olhos e disse: “Reconhece-me ou devora-me”. Édipo o devorou. E assim, parte da profecia se cumpriu, mas o enigma de seu nascimento se perpetuou. A Esfinge, por outro lado, se interpôs e anunciou: Decifra-me ou devoro-te. Édipo a decifrou e um novo passo foi dado em direção ao cumprimento de sua sina atroz.
A ascensão ao trono de Tebas o levou a desposar a mãe Jocasta. Afinal, ao novo Rei era necessário que gozasse do leito de sua nova casa, que percorresse os caminhos obscuros e desconhecidos de sua dona, que os descobrisse e adentrasse sem pudor. Como, em tal circunstância, poderia Édipo saber-se desafortunado? Como poderia suspeitar de que não tendo recebido leite do seio materno, deleitava-se agora em semear o ventre da mãe que desconhecia?
Foi assim que, iludidos, mãe e filho enroscaram-se na confusão de seu destino, como se ambos, num transe, tivessem perdido a consciência dos limites da vida, destruindo as barreiras que separavam seus corpos. O ventre de Jocasta havia engolido o próprio mundo, tocando assim, o caos da existência.
A completude encontrada poderia ter se perpetuado caso não houvesse sido erigida sobre uma realidade às avessas e o brado de uma cidade amaldiçoada não viesse para despertar os amantes de seu tão longo sono. Mas era preciso vingar Laio, era preciso salvar Tebas e para isso desterrar o culpado por sua morte. Era preciso desvelar a verdade, era preciso desembaraçar os fios da trama, era preciso que Édipo nascesse.
Jocasta, tendo enfim tomado consciência de seu erro, optou por partir-se. Enlaçou-se definitivamente ao fio de carne e sangue que se esquecera de cortar no princípio e deixou-se enforcar. “Dê-se a luz”, ela disse. A luz se deu. Édipo cegou.

Os demônios de Hamlet

por Filipe Rossi

Há um tempo tive uma experiência diabólica:
Deitado em minha cama dormindo, acordo repentinamente, abro os olhos e deparo-me com um demônio. Todo vestido de negro, uma capa que lhe tampava o rosto. Podem duvidar da narrativa. Eu também duvido.  Não creio em ocultismo. Mas esta experiência foi real, e a atribuo a um fenômeno de linguagem – uma narrativa criada pelo exercício de minha mente enquanto repousava. Isto acontece praticamente todos os dias com todos. Mas no meu caso o que chamou a atenção foi a experiência com um demônio.
Este demônio me disse coisas. Lógico que não ouvi sua voz, não ouvi o fenômeno físico da voz, mas ouvi certo número de elementos linguísticos fabricado pela minha própria mente atribuído a este espectro, também fabricado por minha cabeça.
Caso o leitor seja afeito à filosofia já deve ter ouvido falar sobre as vozes que Sócrates ouvia, vozes que o dissuadia em momentos cruciais de sua vida. O próprio Jung frequentemente tinha o que chamou de sonhos premonitórios. Creio que minha experiência tenha sido deste campo psíquico. Mas também sou cético em relação a psicanálise. Pois creio fielmente no poder da linguagem. Ela tudo fabrica! E vivemos sim na REALIDADE da linguagem. Tudo é real…
Tudo o que ouvi daquele demônio naquele dia se cumpriu. E enquanto falava comecei a ver seu rosto com nitidez, e assemelhava-se com uma pessoa próxima, familiar. E de fato suas palavras despertaram como acontecimento.
Creio que esta deva ser a experiência vivida por Hamlet no início da peça. Ora, mas outras personagens também viram o Fantasma do pai de Hamlet. Porém Shakespeare utilizava um esquema em suas peças: Só possui relevância aquele que fala em verso; os prosadores são “prosaicos”, não afetam a cena profundamente, ela só ganha relevância quando alguém ‘nobre’ é afetado pelo acontecimento. Tanto é notório este esquema que Francisco, Bernardo e Marcelo não aparecem nunca mais na peça, porém Horácio que possui o sangue um pouco mais nobre, continuará sendo a voz guia de Hamlet, e a figura incumbida de narrar a outros ouvidos a história deste príncipe, depois de sua morte, no quinto ato.
Horácio é a própria figura de Shakespeare arquitetonicamente posta ao lado do príncipe, e também testemunha ocular da presença do Fantasma. Os guardas não sabemos mais nada durante o texto. Mas Horácio-Shakespeare cria em nós a presentificação do Fantasma, não permitindo que nós leitores-espectadores julguemos ser obra da loucura fingida e vivida por Hamlet.
A presença do Fantasma trata-se da personificação linguística dos demônios de Hamlet. E não trata-se de psicanálise. É antes a desconfiança de Hamlet sobre os acontecimentos. Hamlet fala em verso, é nobre… Poucas palavras reúnem a força existencial… Um pai morto sem grandes explicações; um tio que toma para si o trono e a rainha, num curto período de tempo… É de se estranhar! A mente de Hamlet organiza-se de modo a erguer a figura do Espectro de seu pai. E é claro que este espectro dirá tudo que Hamlet já sabe, porém teme a veracidade. E seu temor transpassa a peça. Ele não tem provas concretas sobre o veredito que o demônio forjado por ele vos deu. E mesmo que considere esta hipótese deverá tratar de justificar todos os seus atos através da fabricação de um demônio que o permita agir.
É a voz demoníaca que ordena Ofélia conduzir-se para um convento. É uma voz demoníaca que diz haver ratos atrás da tapeçaria enquanto golpeia-os e mata Polônio. É uma voz demoníaca que obriga Gertrudes olhar o retrato do Rei de ontem e do Rei de hoje. E neste momento, cansado de afligir os outros, fabrica novamente o demônio-fantasma de seu pai o dissuadindo de agredir sua mãe. E agora é cada vez mais necessário fingir loucura. Até o ponto em que loucura e não-loucura seja uma linha extremamente tênue.
É necessário ainda criar um mecanismo físico que impossibilite a elaboração linguística de novos demônios. É necessário agir. Sumir por um tempo. Pensar sobre a condição da vida e da morte. É necessário obrigar as pessoas ouvirem a existência em versos. Hamlet cura sua loucura fingida, e sua loucura sentida. Ele quer apenas agir, mesmo que a ação não denote vingança. Que ela seja apenas ordem para que os versos não quebrem as linhas e continuamente tornam-se prosa.
Assim, aceita o convite do Rei pela boca de Osric. É necessário entreter-se não permitir espaço para que os demônios apareçam. E agora Hamlet pode matar, pois foi ameaçado e impelido a tal evento. Laertes, filho de Polônio, irmão de Ofélia que enlouquecera, dá a Hamlet o motivo necessário para obra. Porém, Hamlet vinga a morte do pai como quis o demônio? Ou vinga a morte da mãe, envenenada pelo Rei, que tinha como intento assassiná-lo?!
Demônios são seres linguísticos que acreditamos, mas não possuem a força da persuasão. A ação é crível e persuasiva.
Por isso, nunca mais consegui dormir de barriga pra cima!

Μήδεια

por Filipe Rossi

Uma Mulher. Uma Bruxa. Não no sentido medieval, e sim antigo.

Uma Mulher que possui ascendência divina, dons misteriosos, e sagacidade para realizar o que bem deseja. Porém, mesmo sendo uma semi-deusa, os deuses “legítimos” também gostam de brincar. E ela é enfeitiçada pelos dons mais poderosos de Afrodite. E este amor traz a desgraça de todos os Homens que de algum modo aparecem em seu caminho.
O feitiço de Afrodite, muito bem conhecido por todos os viventes, faz com que Medeia encontre Jasão. Este homem tornaria-se vítima do pai da mulher. Mas Medeia o faz escapar de todas as armadilhas. O mesmo ocorre quando o irmão de Medeia põe-se no caminho. Ela o esquarteja e espalha os pedaços do corpo para que seu pai os recolha e dê tempo de fugir com Jasão e os Argonautas.
A cada caminho um feitiço de Medeia. E as barreiras caem…
Até que o fim do enlace aponte Corinto!
É nesta terra que Medeia sentir-se-á como uma simples mulher, como nunca em sua vida toda. Medeia era Mulher, e não mulher. Era uma semi-deusa que organizava sua vida e daqueles que a circundavam como cabe à um deus: Manipulando, arregimentando, dando ordens ao tempo e aos temperos. E ali, naquela terra estrangeira sente-se manipulada, organizada conforme outra lógica. Agora são Homens que movimentam sua vida, sua rotina e exigem que todo seu ímpeto empalideça até abrandar o fogo de seu espírito e de suas mãos feiticeiras.
Esta Mulher sofre, e outras mulheres diante dela têm piedade. Acreditam que Medeia fora driblada pelos homens, como toda mulher o é. Não notam que seus lamentos já fazem parte da ascensão de seu domínio sobre os mortais que julgam ter direitos e forças até mesmo sobre os semi-deuses. Medeia lamenta-se, chora, grita, amaldiçoa, todo isso é apenas ingrediente para a demonstração de seus dons.
Mas talvez algumas gotas de lágrimas escapem a mais, pois sabe que deverá colocar no caldeirão da desmesura a pele macia dos filhos daquele homem à quem fez vitorioso. Somente o sangue inocente dá conta da verdadeira transformação!
Ela sabe que deveria errar por outras terras depois de cumprir seu intento. E que não encontraria em lugar nenhum boa hospedagem. À não ser que um outro Homem cruzasse seu caminho. Um Homem digno da letra maiúscula. E este Homem apareceu. Egeu sentiu-se apiedado e forneceu a esperança que Medeia necessitava. Mas já o conduziu para o Hall dos arregimentados quando o obriga tecer palavras em tom de juramento. Ele jurou! E o feitiço recebia um dos melhores temperos.
Medeia dissimulou loucura, como agora dissimula pensamentos sãos. Oferece presentes dignos da realeza do lugar. E o banquete do horror aos olhos de Jasão estava servido.
Faltava os manjares! E estes vieram em forma de crianças sem espírito.
Jasão depara-se com sua fraqueza. Sabe que não teria chegado longe sem os dons de Medeia. Mas ela resolveu retirar o seu auxílio ao homem, que perde agora sua letra maiúscula.
Os filhos voam junto da Mulher, agarrados à máquina divina, que vem ao auxílio dos fortes. Some dos olhos do homem. Fica na caverna de todos nós um M maiúsculo de Medeia, de Mãe, de Morte, de Mácula… de Mulher!

Medeia: Tragédia ou Drama?

por Filipe Rossi

Quando leio Medeia de Eurípedes fico sempre com uma sensação estranha: Li, realmente, uma tragedia?
Considero-me um bom leitor de Nietzsche. Li quase todos. Li os primeiros escritos deste filósofo, e estes foram exatamente sobre a cultura helênica, sobre os principais filósofos da época trágica dos gregos. E é de enorme deleite quando fala sobre Sócrates, e aqueles que ouviram Sócrates falar. Eurípedes foi um desses…
Nietzsche o acusa de por fim ao teatro grego. A por fim na tragédia grega. Assim, sinto-me influenciado de alguma forma com este pensamento. Mas caso analisemos por este viés é inegável a ruptura que este tragediógrafo causou na cultura helênica e humana em geral.
Lancemos uma comparação mesquinha entre Medeia e Édipo Rei. O segundo, considerado por Aristóteles como a “Tragédia Perfeita” possui uma estrutura precisa, como bem analisou o filósofo, quanto Medeia possui sua estrutura, porém é titubeante. As coisas acontecem por acumulo e ficam por isso mesmo. Como se o escritor quisesse causar horror no público através da angústia continua, e não através da desgraça do herói. Mas afinal, quem é o herói em Medeia. Medeia? Mas ela encerra a obra vitoriosa e alando-se através de um deus-máquina?!
Em Eurípedes o que vale é a psique do herói, e não seus atos. E esta escolha dramatúrgica não tem nada a ver com os helenos. Talvez a influência de Sócrates e Platão à Eurípedes tenha surtido efeito. Então como nos narra o próprio Platão em “Apologia de Sócrates” que foi morto por sua sentença prever a “corrupção da juventude”, está corretíssima. O jovem Eurípedes fora corrompido.
Em Medeia de Eurípedes podemos encontrar o que viria a ser a culpa cristã. Sim, pois é justamente isto que Medeia quer suscitar em Jasão. Se pensarmos sobre o efeito da catarse a obra surge como exemplo para quem? Homem ou Mulher?! Caso pensemos nos Homens o efeito é o sentimento da culpa. Caso seja a Mulher serve de exemplo para o tempero da desmesura, do ódio, da vingança. Ou seja, a pacificação do espírito feminino tido como “destemperado”. Ambas as leituras não correspondem com a personalidade grega que chegou até nós através de outras obras trágicas, líricas, pensamentos e outros.
Caso este argumento tenha fundamento Eurípedes inaugura com Medeia o drama. Uma trama psicológica que nos leva a um único ato: Dar cabo de seus filhos!
Talvez estes filhos sejam a juventude grega, e que o deus-máquina nos atire nas nuvens e quando pisarmos terra firme haja a seguinte inscrição gravada na pedra: Welcome Roma!

Τειρεσίας

por Filipe Rossi

Um menino o guia. Carrega o corpo cansado para a tortura. Tortura sua, tortura dos ouvidos que acolherão palavras desafortunadas.
Durante o percurso é possível que a voz do velho não ecoou no ouvido do menino. O próprio menino por horas não disse nenhuma palavra. Apenas cedeu seus ombros como bengalas. E na mão direita do velho um cetro. Ou seja, uma figura digna de prostração.
Sua chegada é aguardada. Saudado como divindade. O Rei prostra-se diante dele. Mas em poucos minutos toda cerimônia de exaltação e ritualização da figura do velho torna-se um evento de escárnio. O rei deita sobre os ombros do adivinho mal-dizeres. E nada mais grave para um sacerdote ser acusado de charlatanice. Édipo, o Rei cego, acusa de cegueira sacerdotal as palavras do velho cego.
Ora, por quê tantas palavras e a repetição primorosa do poeta da palavra “cego”. Aos olhos dos que não veem não sugam a verdade da luz. Quem é a luz do mundo? O sol! e quem é o sol? Apolo, que conduz sua carruagem todos os dias, do oriente para o ocidente.
É Dionísio que habita a cena! É Dionísio que embebeda os discordantes e confunde suas palavras e argumentos.
O menino apenas ouve…
O poeta põe em cena a própria questão que a esfinge perquiriu à Édipo, e este a destruiu, tornando-se Rei e incestuoso. É como se o monstro mítico vingasse a sapiência do herói, e deixasse em seu legado a escravidão da condição humana: “Ages como o portador de toda a razão. Sofres com a derrota da intuição.” O que é mitológico não pode morrer, não pode ser assassinado.
As três idades em cena é o riso de escárnio da esfinge. A discussão entre os convivas é o eco da charada.
Até mesmo Tirésias escraviza-se nesta cena. Apenas rebate os gritos de Édipo. E retira-se. Teu sangue ferveu, tua ampla visão mesmo na cegueira apagou-se. A esfinge também riu do velho.
Ora, ora… O velho também é humano, e também é cego quando age única e exclusivamente pela razão. Porém os deuses são infinitamente cruéis. Eles criam as intempéries para que o homem caia em tentação.
Tirésias, o cego, é humano, assim como Édipo. Tirésias é cego pois viu a deusa Antena banhando-se, nua…

Ιοκάστη

por Filipe Rossi

Ela já sabia…
Ao final do texto de Édipo, Rei, Jocasta antevê ao discurso completo todo o ritual de sua morte. Ela caminha para dentro do castelo, chora, grita, provavelmente soa sangue… Apenas a certeza do balanço a que o seu corpo destina-se. Um servo ouve, provavelmente espia. E o corpo de Jocasta balança.
Ela tece a trama com muito mais velocidade que seu filho-esposo. Este recurso no discurso posto por Sófocles só acentua a cegueira de Édipo, mesmo antes de vazar os próprios olhos. O autor deixa para a dramaturgia um legado, e Shakespeare um milênio mais tarde utilizará na personagem Conde de Gloucester da peça Rei Lear. Mas também o Rei de Shakespeare sofre da cegueira de Édipo. Fato-fícto que comprova meu discurso do texto anterior.
Voltando a sapiência de Jocasta: Sua aparição surge do destemperamento de Édipo com o velho Tirésias – este sim cego e caçoador da cegueira edípica – vem para curar o veneno posto nos olhos do Rei. A clarividência do velho sacerdote causa dores aos olhos, e Jocasta, que significa curadora do veneno, pinga colírios. O efeito é tardio! O que lubrificou e os deixou aptos a enxergar com clareza foi o feitiço empregado pela mãe-esposa, quando o rei adentra o castelo e em cima de seu leito incestuoso o corpo da mulher balança.
Não há mais nenhum argumento, discurso ou algo que o valha, que desmonte a força verbal dos deuses. O verbo divino é carne, mas também é sangue, e inevitavelmente é osso.
As falanges tateiam o broche, o metal pontiagudo transpassa a carne e o sangue purificador de um reino escorre.
Jocasta já previa… pré – via!
Ela, Jocasta, matou Laio! Ela, Jocasta, vazou os olhos de Édipo e o desterrou!
Toda a culpa é oriunda da mulher, quando esta não toma para si o ato do sacrifício.
Jocasta entendeu as palavras do deus, sacrificou a si mesma. Suas filhas haveriam de compreender a mensagem. Mas só Antígona foi perspicaz.
Jocasta: curadora do veneno! Mas não quando a peçonha é divina!

Οιδίπους

por Filipe Rossi

De joelhos prostrados, rasgando a carne na escada do castelo. Um rei cego, ainda não, mas futuramente… Ramos de oliveiras. Oliveira, sempre as folhas da árvore desditosa: sinônimo de grandeza e queda em pouco tempo.
Assim começa Édipo, Rei.
Aristóteles captou muito bem a estrutura da tragédia de Sófocles e deu ao mundo um modelo a ser seguido, e ser analisado.
Haveria civilização ocidental sem Édipo? Acho difícil! Parece banal o enredo, o próprio mito, para um bípede sem penas do século XXI da era cristã. Apenas mais uma história! Mas caso lancemos olhares à obra que nos chegou – a tragédia de Sófocles – notaremos ali as bases daquilo que Freud chamou de inconsciente.
Este assunto é um tanto batido para muitos, mas o que proponho aqui é outra análise. São as palavras do próprio Sófocles e suas escolhas que me chamam atenção. É a luta do pobre Édipo contra Apolo e Dioniso. Ele é apenas um joguete nas mãos deste dois deuses. Eles brincam de dados lançando a sorte de Édipo.
A razão leva a psique de Édipo para um lugar, mas logo novo lance dos deuses fazem com que o homem decline à angustia mais dolorosa, e pesquise em si mesmo o passado que fora rasgado, e no tempo presente seja re-colado à trama de seu destino.
Édipo não é um Homem íntegro. Ele já o é fragmentado. Ele é o Rei, ele é o Herói, ele é o assassino, ele é esposo, pai, irmão, ele é o condenado, ele é o que escolheu seu destino, ele é UM HOMEM!
Quando está na mão de Apolo e é lançado como dados, busca encontrar os porquês, busca agir nobremente. Quando encontra-se nas mãos daquele “feito nas cochas” sente-se embriagado, feroz, incoerente e abusa de seus dons. Ora os dons de Édipo são fabricações de algum daemonion! Essa voz de embriaguez que fica em seu ouvido ditando maledicências.
Por tanto, Édipo de Freud é apenas uma faceta de Édipo de Sófocles. Ele é muito mais fragmentado e universal quanto Freud imaginava.

Édipo da tragédia grega é o homem ordinário, este que vemos todos os dias. E os segredos de Édipo são os mesmos segredos vergonhosos que carregamos em nossa psique (segundo Santo Agostinho), e fugimos deles, fugimos… Mas a barafunda da vida nos empurra para o lodo. Sempre! Pecamos contra nós primeiramente, pois, segundo Schopenhauer, o verdadeiro pecado vem dos Deuses!

Mater

por Filipe Rossi

Introdução:

Ocidente e Oriente. Há certa divisão cultural e filosófica nestes dois pólos do planeta Terra, onde dá-se a história do Ser Humano. Tudo que conhecemos e todos pensamentos possíveis estão situados nesta dicotomia da existência humana. Porém há um elemento fundador em ambos os lados. Elemento este que serviu de alicerce para a cultura e a filosofia destes pólos definidos como opostos: O MITO.
O mito (certa narrativa que tem por finalidade explicar o que até então era inexplicável através de alegorias) é algo genuinamente Humano, base da linguagem que por sua vez é o cimento e o tijolo desta mesma Humanidade. O mito então é o terreno aplainado, apto para fundar a casa do Homem. Não podemos pensar em civilização Ocidental e/ou Oriental sem encontrar na base desta estrutura o mito.
Mas ainda há uma estrutura abaixo desta base, como raízes que projetam a árvore e seus frutos. Abaixo do mito só podemos encontrar aquilo que seria as sementes do que hoje compreendemos como Arte. O processo de humanização se dá através da concepção da linguagem, mas esta concepção dá-se através da organização corporal em resposta aos estímulos da natureza captados pelos sentidos. O Homem ouve os sons da natureza e busca dominá-los e reproduzi-los, nasce o impulso corpóreo para esta reprodução sonora reorganizando o corpo deste Homem coreografando sua movimentação. Esta mesma movimentação reorienta o clã a uma estrutura do movimento onde o forte, o ágil, o que domina o tempo-ritmo torna-se arauto desta reprodução sonora, atribuindo funções já ritualísticas. Neste estágio é necessário transformar a natureza em extensão de seu próprio corpo: O trabalho como indicado por Marx e Engels.
É neste momento que o Mito aparece, como base da civilização!
Claro que esta análise é posta aqui como um mecanismo de imaginação, sem necessariamente obedecer cânones da Antropologia. Apenas notamos a gênese da sociedade, seja ela ocidental ou oriental, na semente da música, da dança, do teatro como rito humano. São justamente estas sementes que favorecerão o surgimento do Mito que edificará suas duas vertentes antagônicas mas ao mesmo tempo complementares: a Filosofia e a Religião. E exatamente estas duas vertentes criarão este mundo que conhecemos.

O Mito:

A Farrapo Cênico Cia Teatral busca então um teatro que contemple o Mito como temática principal. Afinal estas narrativas fundadoras do Homem são o que merecem o cuidado das Artes. Porém as Filosofias e Religiões que vieram através destas narrativas acabaram por desconectar o Ser Humano do “princípio gerador”, a Natureza, ou seja, o Cosmo.
O Homem, e a linguagem que concebe este Homem, é hipostasiada e levada ao cume metafísico construindo o engodo da semelhança, e até confundindo o Homem com os Deuses.
Onde deveria imperar a luta Humana para a comunhão dos humanos à conexão com o mistério existencial, há o duelo titânico entre os Homens.
Para nós, cabe às Artes do dever de arregimentar o ataque a estas filosofias e religiões que organizaram esta decadência. Porém, cairíamos no erro de transformar a Arte em detentora de um novo saber, o que seria um novo engodo. Cabe simplesmente a Arte arquitetar novas narrativas, ou novos campos do possível ao Humano. Desta forma olhamos antes para os mitos fundadores. Observamos seu caminho ao longo da história e isto nos mostra se certa narrativa possui relevância e solo fértil em sua origem.
A partir deste modo artesanal de olhar para o Homem, encontramos na própria História do Teatro um mito de altíssima relevância e fertilidade, o que produziu este dúbio fruto através da religião e da filosofia, até chegar em nossos tempos. Este mito é a narrativa Tebana de Édipo.

ÉDIPO vs MATER

O texto de Sófocles é a obra que ultrapassa os anos e que nos traz a narrativa deste herói trágico. Um Mito com requintes narrativos e tensões fabricadas pelo poeta. Mas mesmo que a obra de Sófocles não conseguisse atravessar o tempo, o Mito edípico chegaria até nós por ser um dos mitos fundadores da civilização, mais necessariamente do Ocidente.
É um mito complexo utilizado tanto pela filosofia, como pela religião. E estas duas vertentes organizaram a linguagem humana já reconhecendo as duras penas dos “erros” do herói, constituindo assim preceitos morais aos Homens ocidentais.
O texto MATER de Filipe Rossi, surge como inversão, ou como a tentativa de alterar este mito fundador. Elementos complexos do tema tebano são reorganizados na tentativa de erigir uma nova narrativa. Porém sem a pretensão de tornar-se um novo mito, pois este intento cometeria também o erro de contrapor a história do Ser Humano. Apenas tem o objetivo de que através do encontro teatral, por alguns minutos o ser humano contemporâneo ocidental, possa reverter seus preceitos filosóficos e religiosos, observando a possível alteração de sua subjetividade, alertando-os para o poder da linguagem.
Este introitus de nosso projeto servirá como guia ao leitor para os demais temas que publicaremos. Mas como trata-se de um pensamento conectado com nossa prática, estes mesmos pensamentos podem se alterar ao longo do projeto. O que importa aqui é a práxis teatral em busca de um material estético de relevância. Convidamos também os leitores deste blog tecer comentários para enriquecer nosso material teórico, e assim atingir nossa prática.