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Da Mãe à Mãe

por Isadora Aragão
 
Do nascimento à morte
 

Uma mulher se parte no parto. Despede-se com dificuldade da parte de si que se transmuta num ser novo.  Rompem-se os laços, corta-se o fio e nascem mãe e filho. Nunca mais ela será a mesma. Cindiu-se e algo sempre lhe faltará. Quanto ao filho, apartado da mãe, tampouco encontrará abrigo, seguirá por caminhos tortos numa busca incessante pela completude inicial que se perdeu. Perdido ele permanece, num tatear febril e insistente até o corpo pesar e é com pesar que ele decide parar. Seus pés, servos mais dedicados em vida, rebelam-se e exigem descanso. O homem teima, mas por mais que o faça não resiste à tentação. É preciso entregar-se, usar o receptáculo que, desde o dia do nascimento, cavou para si mesmo no ventre do mundo.

Da morte ao nascimento
 
Para que Édipo não errasse, Jocasta cometeu o mais infeliz de seus erros: tentou imobilizar seu filho, grampear-lhe os pés e atira-lo nos braços da morte. Porém, o que ela não percebeu é que neste ato, concentrada em desfazer a funesta trama tecida pelos Deuses, se esquecera de cortar o mais íntimo fio que a unia ao filho: o fio da vida. Assim, despediu-se de sua criança, pensando driblar o destino ao usar a morte a seu favor e não se deu conta de que, devido à ligação entre eles, seu plano falhara. Pois, Édipo às portas do Hades fora impedido de prosseguir: Como poderia morrer aquele que não nascera?
                Levado então a Corinto, Édipo viveu a ilusão de ter nascido noutros pais, noutra pátria e o abrigo oferecido por Mérope e Políbio por alguns anos impediu que a questão de sua origem tivesse relevância. No entanto, os Deuses eram ardilosos e a paz conferida a Édipo, temporária. Portanto, não demorou para que sussurros jogados ao vento chegassem à seus ouvidos e colocassem em cheque a solidez das paredes do lar em que ele vivera até então. Um anúncio grotesco fora proferido e nada restou a Édipo a não ser abandonar Corinto.
Sem que percebesse, eram as amarras insistentes e invisíveis da terra natal que o levavam de volta ao berço e o sinuoso caminho a ser percorrido por esse homem que desde o princípio carregara as marcas da incerteza nos pés acabou por desembocar na decisiva encruzilhada do Eu.  Ali, seu verdadeiro pai, Laio, olhou-o nos olhos e disse: “Reconhece-me ou devora-me”. Édipo o devorou. E assim, parte da profecia se cumpriu, mas o enigma de seu nascimento se perpetuou. A Esfinge, por outro lado, se interpôs e anunciou: Decifra-me ou devoro-te. Édipo a decifrou e um novo passo foi dado em direção ao cumprimento de sua sina atroz.
A ascensão ao trono de Tebas o levou a desposar a mãe Jocasta. Afinal, ao novo Rei era necessário que gozasse do leito de sua nova casa, que percorresse os caminhos obscuros e desconhecidos de sua dona, que os descobrisse e adentrasse sem pudor. Como, em tal circunstância, poderia Édipo saber-se desafortunado? Como poderia suspeitar de que não tendo recebido leite do seio materno, deleitava-se agora em semear o ventre da mãe que desconhecia?
Foi assim que, iludidos, mãe e filho enroscaram-se na confusão de seu destino, como se ambos, num transe, tivessem perdido a consciência dos limites da vida, destruindo as barreiras que separavam seus corpos. O ventre de Jocasta havia engolido o próprio mundo, tocando assim, o caos da existência.
A completude encontrada poderia ter se perpetuado caso não houvesse sido erigida sobre uma realidade às avessas e o brado de uma cidade amaldiçoada não viesse para despertar os amantes de seu tão longo sono. Mas era preciso vingar Laio, era preciso salvar Tebas e para isso desterrar o culpado por sua morte. Era preciso desvelar a verdade, era preciso desembaraçar os fios da trama, era preciso que Édipo nascesse.
Jocasta, tendo enfim tomado consciência de seu erro, optou por partir-se. Enlaçou-se definitivamente ao fio de carne e sangue que se esquecera de cortar no princípio e deixou-se enforcar. “Dê-se a luz”, ela disse. A luz se deu. Édipo cegou.

Τειρεσίας

por Filipe Rossi

Um menino o guia. Carrega o corpo cansado para a tortura. Tortura sua, tortura dos ouvidos que acolherão palavras desafortunadas.
Durante o percurso é possível que a voz do velho não ecoou no ouvido do menino. O próprio menino por horas não disse nenhuma palavra. Apenas cedeu seus ombros como bengalas. E na mão direita do velho um cetro. Ou seja, uma figura digna de prostração.
Sua chegada é aguardada. Saudado como divindade. O Rei prostra-se diante dele. Mas em poucos minutos toda cerimônia de exaltação e ritualização da figura do velho torna-se um evento de escárnio. O rei deita sobre os ombros do adivinho mal-dizeres. E nada mais grave para um sacerdote ser acusado de charlatanice. Édipo, o Rei cego, acusa de cegueira sacerdotal as palavras do velho cego.
Ora, por quê tantas palavras e a repetição primorosa do poeta da palavra “cego”. Aos olhos dos que não veem não sugam a verdade da luz. Quem é a luz do mundo? O sol! e quem é o sol? Apolo, que conduz sua carruagem todos os dias, do oriente para o ocidente.
É Dionísio que habita a cena! É Dionísio que embebeda os discordantes e confunde suas palavras e argumentos.
O menino apenas ouve…
O poeta põe em cena a própria questão que a esfinge perquiriu à Édipo, e este a destruiu, tornando-se Rei e incestuoso. É como se o monstro mítico vingasse a sapiência do herói, e deixasse em seu legado a escravidão da condição humana: “Ages como o portador de toda a razão. Sofres com a derrota da intuição.” O que é mitológico não pode morrer, não pode ser assassinado.
As três idades em cena é o riso de escárnio da esfinge. A discussão entre os convivas é o eco da charada.
Até mesmo Tirésias escraviza-se nesta cena. Apenas rebate os gritos de Édipo. E retira-se. Teu sangue ferveu, tua ampla visão mesmo na cegueira apagou-se. A esfinge também riu do velho.
Ora, ora… O velho também é humano, e também é cego quando age única e exclusivamente pela razão. Porém os deuses são infinitamente cruéis. Eles criam as intempéries para que o homem caia em tentação.
Tirésias, o cego, é humano, assim como Édipo. Tirésias é cego pois viu a deusa Antena banhando-se, nua…

Ιοκάστη

por Filipe Rossi

Ela já sabia…
Ao final do texto de Édipo, Rei, Jocasta antevê ao discurso completo todo o ritual de sua morte. Ela caminha para dentro do castelo, chora, grita, provavelmente soa sangue… Apenas a certeza do balanço a que o seu corpo destina-se. Um servo ouve, provavelmente espia. E o corpo de Jocasta balança.
Ela tece a trama com muito mais velocidade que seu filho-esposo. Este recurso no discurso posto por Sófocles só acentua a cegueira de Édipo, mesmo antes de vazar os próprios olhos. O autor deixa para a dramaturgia um legado, e Shakespeare um milênio mais tarde utilizará na personagem Conde de Gloucester da peça Rei Lear. Mas também o Rei de Shakespeare sofre da cegueira de Édipo. Fato-fícto que comprova meu discurso do texto anterior.
Voltando a sapiência de Jocasta: Sua aparição surge do destemperamento de Édipo com o velho Tirésias – este sim cego e caçoador da cegueira edípica – vem para curar o veneno posto nos olhos do Rei. A clarividência do velho sacerdote causa dores aos olhos, e Jocasta, que significa curadora do veneno, pinga colírios. O efeito é tardio! O que lubrificou e os deixou aptos a enxergar com clareza foi o feitiço empregado pela mãe-esposa, quando o rei adentra o castelo e em cima de seu leito incestuoso o corpo da mulher balança.
Não há mais nenhum argumento, discurso ou algo que o valha, que desmonte a força verbal dos deuses. O verbo divino é carne, mas também é sangue, e inevitavelmente é osso.
As falanges tateiam o broche, o metal pontiagudo transpassa a carne e o sangue purificador de um reino escorre.
Jocasta já previa… pré – via!
Ela, Jocasta, matou Laio! Ela, Jocasta, vazou os olhos de Édipo e o desterrou!
Toda a culpa é oriunda da mulher, quando esta não toma para si o ato do sacrifício.
Jocasta entendeu as palavras do deus, sacrificou a si mesma. Suas filhas haveriam de compreender a mensagem. Mas só Antígona foi perspicaz.
Jocasta: curadora do veneno! Mas não quando a peçonha é divina!

Οιδίπους

por Filipe Rossi

De joelhos prostrados, rasgando a carne na escada do castelo. Um rei cego, ainda não, mas futuramente… Ramos de oliveiras. Oliveira, sempre as folhas da árvore desditosa: sinônimo de grandeza e queda em pouco tempo.
Assim começa Édipo, Rei.
Aristóteles captou muito bem a estrutura da tragédia de Sófocles e deu ao mundo um modelo a ser seguido, e ser analisado.
Haveria civilização ocidental sem Édipo? Acho difícil! Parece banal o enredo, o próprio mito, para um bípede sem penas do século XXI da era cristã. Apenas mais uma história! Mas caso lancemos olhares à obra que nos chegou – a tragédia de Sófocles – notaremos ali as bases daquilo que Freud chamou de inconsciente.
Este assunto é um tanto batido para muitos, mas o que proponho aqui é outra análise. São as palavras do próprio Sófocles e suas escolhas que me chamam atenção. É a luta do pobre Édipo contra Apolo e Dioniso. Ele é apenas um joguete nas mãos deste dois deuses. Eles brincam de dados lançando a sorte de Édipo.
A razão leva a psique de Édipo para um lugar, mas logo novo lance dos deuses fazem com que o homem decline à angustia mais dolorosa, e pesquise em si mesmo o passado que fora rasgado, e no tempo presente seja re-colado à trama de seu destino.
Édipo não é um Homem íntegro. Ele já o é fragmentado. Ele é o Rei, ele é o Herói, ele é o assassino, ele é esposo, pai, irmão, ele é o condenado, ele é o que escolheu seu destino, ele é UM HOMEM!
Quando está na mão de Apolo e é lançado como dados, busca encontrar os porquês, busca agir nobremente. Quando encontra-se nas mãos daquele “feito nas cochas” sente-se embriagado, feroz, incoerente e abusa de seus dons. Ora os dons de Édipo são fabricações de algum daemonion! Essa voz de embriaguez que fica em seu ouvido ditando maledicências.
Por tanto, Édipo de Freud é apenas uma faceta de Édipo de Sófocles. Ele é muito mais fragmentado e universal quanto Freud imaginava.

Édipo da tragédia grega é o homem ordinário, este que vemos todos os dias. E os segredos de Édipo são os mesmos segredos vergonhosos que carregamos em nossa psique (segundo Santo Agostinho), e fugimos deles, fugimos… Mas a barafunda da vida nos empurra para o lodo. Sempre! Pecamos contra nós primeiramente, pois, segundo Schopenhauer, o verdadeiro pecado vem dos Deuses!