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Ham[let] – Deixa-me ser éter, carne e ossos

por Isadora Aragão

“Mostra-me como vês Hamlet e eu te direi quem és.”
 Ludwick Flaszen
Esta frase bastante provocativa de Flaszen esta inserida num ensaio intitulado “Hamlet no Laboratório Teatral”, em que o autor tenta nos transmitir as dimensões do contato de Grotowski e seus atores com o texto de Shakespeare. A partir deste ensaio, percebemos que devido ao modo com qual o grupo vinha trabalhando houve uma verdadeira necessidade de se travar um diálogo entre a Inglaterra do Século XVII e a Polônia do Século XX. Isso porque, para eles só pareceu justificável retomar Hamlet se fosse para tratar da realidade que os cercava.
No entanto, isso não significa dizer que “modernizar” o plano de fundo da história tenha sido a maior preocupação do diretor. Pelo contrário, sua ida a este texto se deu muito mais como um estudo do que como pretensão de representação para um público e Hamlet, devido a seu caráter universal, foi para Grotowski uma sólida ponte para àquilo que realmente desejava: o desnudar dos atores diante de si mesmos.
Vemos então, o jovem Hamlet diante do espectro de seu pai e notamos que nesta figura reside para ele tudo que há de mais nobre, bom e belo.  E de tão sublime, se faz etérea essa imagem, que não é outra senão a da mais pura fé. Mas para o que olha Hamlet? Para seu pai? Ou para si mesmo? Em quem mora, enfim, a coragem pela qual ele tanto tem admiração? Aí esta a graça e genialidade desse jogo espectral, pois aquilo que Hamlet vê fora de si é a primeira imagem que faz de si mesmo. E esta para Grotowski, poderia ser considerada uma primeira porta aberta pelo ator para adentrar-se.
Então, tomado pelo calor do contato com o próprio espírito é que o jovem Hamlet vai descobrindo-se também carne, já que o desejo de perder-se em si mesmo para se reencontrar fora despertado. Desse modo, a falsa loucura foi a “desculpa” que precisava para poder ser cada vez mais impulsivo e visceral, para que tudo nele assumisse, sem o peso da culpa, formas de violência. Nesse sentido, vale lembrar que, até o amor que tinha por Ofélia acabou se desdobrando em ofensas e que foi sob o comando dessa força que ele elaborou a cena dos atores para confrontar seu tio.
Porém, quanto mais profundamente Hamlet adentra a própria carne, mais dela se afasta para se aproximar da espinha dorsal da existência humana. Foi assim que, diante de uma cova, tomando na mão um crânio humano pode enxergar-se também perecível. E isto significa que a busca por si mesmo, através deste adentrar-se, resultou no encontro com todos os homens.
Somos espírito, carne e ossos. Essa é nossa tripla condição Hamlet-humana. Basta que desejemos nos rasgar e todo homem será o uni-verso.

E se restar a pergunta: Que é Hamlet? Hamlet é isto que nos pergunta o que Hamlet é.