A Tez da Memória: Memória-Trama

Memória-Trama

por Filipe Rossi

Em 2014 ‘co-memoramos’ os 100 anos do começo da Primeira Grande Guerra, e aqui no Brasil, os 50 anos do Golpe Militar, que instaura anos sombrios à nossa nação. No ano passado sofremos com imagens fortes de um ataque com armamento químico na Síria, assim como imagens das manifestações que tomaram conta do mundo árabe e também de nosso país.

Esta reunião de eventos aparentemente distantes é que nos movimenta em nosso novo projeto: A Tez da Memória. Queremos assim questionar o passado em cada ser humano. A pele sensível que cobre imagens de passados sombrios. Qual é a pele dos fatos que ocorridos na história de cada um de nós protege uma memória humana, nossa responsabilidade sobre o passado da humanidade? O que eu, um cidadão comum tenho a ver com a primeira grande guerra? Qual a minha responsabilidade sobre o Golpe Militar? Qual é o meu corpo, dentre aqueles corpos cobertos de lenços brancos no ataque civil da Síria? Quantas rugas há em mim, causadas por estes eventos que parecem não estarem ao alcance de minha pele?

E dentro destas indagações ramificamos o projeto em três faces:

  • Memória-Poética
  • Memória-Crônica
  • Memória-Trama

Aqui apresentamos precisamente a Memória-Trama:

Temos como suporte dramatúrgico a obra Cinzas às Cinzas e Harold Pinter, o genial dramaturgo inglês, que na fase final de sua obra dedicou-se a temas relacionados a memória de um passado político conturbado. Esta obra trata suas personagens como perfuradores da epiderme em busca do corpo de uma memória que insiste em revisitá-los.

Em sintonia com a obra de Pinter, encontramos um livro intitulado Art from the Ashes, a respeito de obras diversas tendo como tema central a vida diante de holocaustos, que nos servirá também como fonte dramatúrgica e de pesquisa imagética.

Julgamos necessário um aprofundamento filosófico a respeito da memória. E encontramos consonância com esse intento a obra filosófica de Henri Bergson, tendo como principal fonte investigativa a obra Matéria e Memória. Como introdução ao pensamento bergsoniano, encontramos o livro Bergsonismo de Gilles Deleuze.

Temos então elencado um material introdutório para encontrar um princípio de criação teatral (quando digo teatral não quero exatamente dizer espetacular):

  • Fatos Históricos
  • Matéria e Memória – Henri Bergson
  • Bergsonismo – Gilles Deleuze
  • Art From The Ashes – Lawrence L. Langer
  • Cinzas às Cinzas – Harold Pinter

Buscamos agora encontrar as memórias coladas nas peles de comuns, encontrar os fatos que estão cravados como valas comuns nos corpos de humanos, pessoas que circulam entre nós, e como todas estas pessoas carregam este fardo chamado passado.

Assim, poderemos Co-Memorar, re-memorar coletivamente. Nossa memória comum exposta num jogo cênico de linguagens, nos dizendo quem somos e porque somos, podendo quem sabe encontrar um pós-Ser, mais leves do fardo de nossos antepassados, mais sábios, menos intolerantes…

A Tez da Memória surge-nos intuitivamente como um projeto teatral ambicioso, onde o espetáculo não é o fim último, mas um veículo para alcançarmos uma experiência humana outra. Penetraremos na memória em busca de uma identidade humana, tocando nossa total ancestralidade para projetarmos nosso Ser ao Mistério.

Pensamentos sobre ALI! e uma possível encenação

por Filipe Rossi

A escritura de uma dramaturgia e encenação contemporânea nos lança em questões como:

  • Espaço – Lugar
  • Corpo – Não-Corpo
  • Tempo – Suspensão

Localizamos estes aspectos elencados e necessitamos observar os efeitos causados no texto.

Em ALI! temos a noção de Espaço desde o título, recortando o imaginário o que vem se chamar Lugar (espaço significado), porém a imprecisão descritiva deste “lugar” o recondiciona ao estado de “espaço” novamente. Este trânsito entre “Espaço – Lugar” é constante na obra como um todo.

O Espaço Cênico (pensando a encenação) torna-se amplo, pois utilizamos a escuridão como esse efeito de infinito, porém, brota deste Espaço um Lugar, quando vemos numa única lâmpada clarificando um praticável coberto por um tecido vermelho. Sabemos que agora temos um Lugar quando dessa emissão de signo reconhecível, contanto, não conseguimos afirmar com precisão do que objetivamente se trata. Quando da inserção do texto dito pelos atores ao ambiente algumas palavras lançam os olhares (do imaginário) para diversos locais numa construção subjetiva por parte daqueles que olham-ouvem, e novamente este Lugar se perde e se encontra na noção de Espaço, porém o Espaço está significado nos levando ao status de Lugar. E este trânsito infinito chega a percepção do espectador na noção de Deslocamentos sucessivos.

Ou seja, a encenação com um cenário irrisório trabalha com sobreposições de Espaço e Lugar; e a dramaturgia opera deslocamentos sucessivos.

Os corpos dos atores trabalham numa tentativa de pequenas ações que encerram em si elementos ritualísticos: olhar de ascensão; olhar e contrição; ajoelhar; prostrar-se; urgir; entregar-se…

Assim, obtemos um jogo Apoteótico e Sacrílego. Apoteótico quando da composição estruturada numa espécie de dança ritualística, e Sacrílega por operar na traição daquilo que é dito.

A dramaturgia aparece como anticorpos, são entidades evocadas na tentativa de materialização desta figuras, que na encenação encontra corpos que não obedecem as formas das entidades. Cabe então à ação vocal tentar tocar os corpos que dançam. É a voz que aparece como veículo condutor no trânsito Corpo – Não-Corpo.

O tempo dramatúrgico trabalha não cronologicamente, mas sim unido aos deslocamentos e sobreposições, retardando um evento e operando apenas em sua eminência. É um instante suspenso que possui em si uma outra lógica temporal, com repetições e avanços, onde passado e futuro presentificam-se, fundindo aos deslocamentos e suspensões.

Já a encenação guarda na dança ritualística das ações um tempo que demonstra-se cronológico, porém quando adensamos o olhar percebemos outro jogo temporal: a encenação pode ser lida de trás para frente como em sua lógica normal. Temos a impressão de ciclos de repetição, mas que cada novo ciclo responde à outro prisma (próximo das teorias das outras dimensões, onde a curvatura do tempo-espaço realiza distorções no instante presente).

O Espetáculo não dura mais de 9 minutos (até o presente momento) porém a experiência estética relativiza a duração, e temos a impressão de que o tempo é suspenso. Não afirmamos ser pouco tempo nem muito. Apenas vivenciamos uma outra estrutura temporal.

Estas análises não dão conta do todo que pode representar o espetáculo e/ou a dramaturgia. São apenas tentativas de melhor se relacionar com este experimento que demonstra-se novo à tudo que vivenciamos em teatro até agora. Mas ainda sentimos uma carência vital enquanto atores, e mesmo como diretor.

É necessário soprar, encher de alma, este barro amaçado e moldado. Dar a ele o spiritus que ele merece.

Qual é este Spiritus?

Não é fácil responder esta questão. É necessário a ousadia do divino. Um Pai-Criador. Não trata-se de uma escolha, trata-se de roubar de outrem a chama divina, um Spiritus Sanctis.

Isto pode soar como metáforas ou excesso de misticismo. Mas trata-se de algo pontual.

Para os primeiros cristãos o espírito santo era a chama que atravessava os corpos daqueles que se reuniam num objetivo comum: Rememorar, re-vivenciar a vida-morte-vida do Cristo. Quando do contato desta chama em todos os participantes vozes tomavam o ambiente faziam vibrar os corpos e as emoções. Palavras que pelo poder sonoro construíam sinfonias pessoais e transcendentais.

Quando dizemos que devemos encher o espetáculo de vida estamos buscando essa chama transcendental. Ora, a chama é o ar da respiração alterado em estado de surpresa, este surpreender-se é reviver imagens potentes de forma espontânea elaborada e aprisionada numa estrutura que o ator consegue acessar sempre e extrair o necessário sempre.

Em suma, o ator deverá trabalhar com imagens que emanam de si. São infinitas vozes que compõe esse Eu transcendente. São imagens-portais para outras configurações da vida.

As imagens-portais são aquelas que fazem surgir imagens outras aparentemente desconexas. Como nos sonhos: chega-se a um limiar narrativo que é alterado de supetão para outra paisagem e ação.

O ator deve estabelecer um exercício mnemônico que o leve a uma imagem-raiz. Quão maior o número de imagens conseguidas, maior é a potência da imagem-portal.

As imagens-portais são basicamente as imagens míticas, híbridas, contendo elementos naturais, formas geométricas simples e cores primitivas. Sons e melodias também podem serem reconhecidas como imagens-portais.

Porém, é necessário ressaltar que este escrito são iluminações, intuições que necessitam de organização para que possamos iniciar um processo de busca. Pode ter o tom de conclusão, mas não consegue encerrar em si todas essas frases.

Mas por que tantos Núcleos de Trabalho?

por Filipe Rossi

É indissociável a trajetória existencial de um artista de sua obra. Embora aspectos extremamente cotidianos devam ser rechaçados das análises de sua produção. E assim, tomaremos essa indagação e esta máxima anterior para pensar cada núcleo de trabalho da companhia.

A companhia surge num momento de efervescência da formação teatral de Filipe Rossi e Isadora Aragão, se junta aos dois, Julia Nogueira. E assim iniciam um projeto de pesquisa dramatúrgica e cênica no tocante ao “teatro infantil”. Este projeto intitulado Buraco é o gerador do que viria se tornar Farrapo Cênico.

Algumas “metodologias” vão se assentando como, por exemplo, o trabalho laboratorial sobre o ator. E outras como: Pesquisa dramatúrgica, novos modos de encenação e interpretação. Porém, o projeto ainda não se deu por completo. Podemos dizer que Buraco ainda vive em processo, mas não adquiriu materialidade. E é neste contexto da falta de materialidade dos projetos que começam a surgir o que nomeamos como Núcleo.

A dificuldade financeira, organizacional e de estrutura física torna-se o grande problema para a transformação da ideia artística em obra de arte. E para suprir esta dificuldade estrutural inicial começamos por fragmentar os anseios artísticos e reorganizá-los em núcleos de atividades. Surge então esta divisão:

  • Núcleo Laboratório
  • Núcleo de Repertório
  • Núcleo Ópera
  • Núcleo Educacional
  • Farrapo Filmes

Núcleo Laboratório

Para nós a arte de ator sempre foi de enorme interesse. Os meandros técnicos onde o ator pode encontrar-se desbloqueado, respondendo a estímulos diversos, como se guardasse em si uma fera, e ao mesmo tempo quando ofertasse seu corpo no ato teatral esta mesma fera tornasse invisível, sempre fustigou a nossa curiosidade como atores em formação. A influência direta de Grotowski e Eugênio Barba, assim como de Artaud, aparece como propulsora da criação deste Núcleo de trabalho, dando ao grupo um caráter laboratorial, espaço para o desenvolvimento técnico do ator.

Este núcleo é tomado como a sala secreta do Humano!

Núcleo de Repertório

Os fundadores do grupo não provêm de famílias abastadas. Assim a busca pela sobrevivência torna-se pauta do dia. O Brasil não é um país afeito à arte como buscamos no grupo compreender. Nosso povo está habituado com o entretenimento, e toma este como sendo arte. Assim, o mercado, onde habita o capital, está também afeito aos modelos de entretenimento.

Sabemos que dedicar-se a arte é dedicar sua existência completa, e ainda assim correr o risco do esquecimento em menos de duas gerações. E que é esquizofrênico cindir-se socialmente, utilizando diversas máscaras sociais. Mas ao mesmo tempo consideramos estas sentenças relativas para cada indivíduo. Por tanto, este núcleo é o mais destoante da filosofia do grupo, ao mesmo tempo em que se torna indispensável.

É neste núcleo de trabalho que encaramos determinadas obras como objetos de entretenimento para troca no mercado, podendo assim sobreviver como artistas. É deste núcleo que sairão peças teatrais que pretendem serem atrativos culturais, cartão de visita e porta de entrada para o mundo complexo da arte teatral. Estas peças farão parte de um repertório que poderá caminhar por cidades diferentes, como um mambembe, levando um pouco da produção artística, posta em padrões de entretenimento, para diversas pessoas.

Núcleo Ópera

Talvez seja o núcleo de maior complexidade estrutural. Isso porque podemos toma-lo como síntese dos dois núcleos anteriores, porém a diferença é que tem como finalidade a construção de obras de arte sem o intuito exclusivo do lucro, e sim do próprio artifício da construção, podendo abrir caminhos para o novo no teatro.

O termo Ópera é tratado por sua etimologia: Obra. Assim damos um tom grandiloquente a este núcleo, já demonstrando a sua reunião de atividades artísticas para a construção de um todo que chamamos encenação.

Segue todos os sujeitos deste núcleo:

  • Ator
  • Diretor e Encenador
  • Dramaturgo
  • Figurinista e Costumista
  • Iluminador
  • Compositor-Arranjador e Sonoplasta
  • Produtor

A Obra então aparece como resultado do encontro de todas estas potencialidades criadoras, que de alguma forma contribua para o novo no teatro.

Núcleo Educacional

É aqui que trabalharemos para que um público novo e diversificado comece habitar cada vez mais salas de espetáculo, adquirindo linguagem sobre esta arte, ampliando suas experiências pessoais estéticas e existenciais. Porém, não acreditamos que seja na contemplação e na reflexão que esta linguagem é adquirida. Mas conjuntamente no fazer!

Este núcleo nasce do anseio de Filipe Rossi (ator e pedagogo) e Isadora Aragão (atriz e historiadora), em promover a ampliação do conhecimento da linguagem teatral como arte para todas as idades.

Há o pré-conceito de que teatro é mais uma forma de entretenimento, assim como o cinema a televisão e agora a internet. Porém, acreditamos que a experiência teatral pode e deve ser mais complexa, adentrando os meandros da arte.

O teatro comparado aos outros ambientes de entretenimento é defasado em estrutura e até mesmo em seus objetivos. Mas quando o teatro é encarado como arte, torna-se muito mais precioso do que os demais ambientes. Pois nele a experiência humana é dada de forma direta, sem velamento.

Porém, não temos em nosso país a educação em arte necessária para experienciar novas possibilidades estéticas. Assim, o Núcleo Educacional surge como este ambiente promotor da educação em arte teatral.

Pensamos a educação em arte teatral em três eixos:

  • Fazer
  • Fruir
  • Refletir

Acreditamos que todos nós somos capazes de produzir arte, mas não necessariamente devemos ser artistas. E o ato de produzir, fruir e refletir em permanente processo dá-nos a oportunidade de experimentar novos modos de perceber nossa existência. E é talvez este o grande objetivo da Arte.

Oferecendo esta possibilidade de interação, que somente o teatro pode ofertar, do encontro de si com o outro, e na atitude de produzir, receber e pensar podemos ampliar a experiência estética de crianças e adultos, e assim o prazer pelo teatro amplia-se, e um novo público poderá usufruir cada vez mais as inúmeras experiências produzidas por esta arte tão antiga quanto o Homem.

Farrapo Filmes

É inegável a importância da tecnologia nos dias atuais. A imagem tornou-se o grande modelo de informação e interação através destas tecnologias. E é neste contexto que pensamos este núcleo, que na verdade fornecerá recursos para a criação de informação e propagação das atividades dos demais núcleos.

Novamente aparece um elemento estruturador que tem por finalidade atingir o mercado, e consequentemente angariar fundos para concretização de todo este ideal teatral ao qual a companhia foi fragmentada. O Farrapo Filmes será um núcleo estruturador da imagem e mensagem da companhia ao público externo, trabalhando na publicidade deste grupo e ao mesmo tempo contribuindo para a reflexão das ações e arquivo institucional.

Suas atividades serão:

  • Captação e produção de imagens (filme e/ou fotografia) para construção de material de marketing e propaganda;
  • Captação de imagens para produção de material intelectual: livro, revista, portfólio das Obras teatrais;
  • Captação de imagens para reflexão sobre o fazer artístico (uso interno ou para fins acadêmico-educacionais com autorização);
  • Arquivamento;

É possível responder a pergunta?

Após todas estas considerações, ainda paira a questão inicial, mas podemos até reformulá-la: É necessário ao fazer teatral esta fragmentação e desenvolvimento demasiadamente teórico? Não é melhor pegar e fazer simplesmente?

Ocorre que nosso país vive um momento delicado. Crescemos economicamente, nos tornamos potências no mercado internacional, somos um povo capitalista e extremamente mercadológico, e não consideramos estas sentenças ruins. Porém, todo este desenvolvimento econômico não foi refletido e investido na estrutura do país. A Educação e a Cultura são devastadas cotidianamente, e nós que nos propomos viver nestas duas áreas sofremos as piores agruras sociais.

Quando fundamos a companhia, com o desejo de fazer teatro percebemos logo que cara que nossa condição não era favorável. Desistir? Sim, passou pela cabeça. Mas a Arte é um vírus que corrói. Então, a única saída foi organizar estruturar, do modo que conseguíssemos fazer. O trabalho está fluindo. Lento… Mas está!

Mesmo com tudo isso, a dúvida ainda paira, não?

Farrapo Mítico: outros desdobramentos

por Filipe Rossi

Mito Fundador:

São nos mitos fundadores que moram o alicerce da linguagem, ou seja, da capacidade humana de significar o mundo. Talvez sem o Homem o mundo não pudesse ser mundo. Sim! quem o significaria? Quem nomearia o que nele há?

Os mitos são precisamente as narrativas que dão conta de inaugurar na arquitetura de nossa linguagem como humanos civilizados a base de todo um conhecimento histórico, biológico, psíquico e precisamente misterioso. Caso nossos antepassados não desbravassem a capacidade das palavras gerarem estados mentais que significam atos, eventos e modelos, não poderíamos nos reconhecer como Humanos do século XXI. Talvez até o tão proclamado EU, não existiria, não edificaria suas vontades, seus desejos aterradores. É lógico que linguagem não se resume a uma cadeia de palavras. Linguagem é antes de tudo um jogo. E todo jogo possui suas regras, e lances orquestrados de modos fantásticos.

É basicamente neste contexto que o mito fundador é especial: Ele é um jogo narrativo, riquíssimo em imagens e possibilidades sonoras que nos envolve numa corda rica em curvas emocionais. Somos presas fáceis deste agrupamento de palavras tão poderosas.

Quer fazer um teste? Leia o Gêneses da bíblia judaico-cristã! Será engolido ferozmente por palavras criadoras do mundo! E não é necessário crer. Obrigatoriamente o jogo posto fará você criar aquele mundo para si.

O mito fundador é esse monstro que devora-nos, e ao mesmo tempo nos transforma, nos programa, e assim reconhecemos nosso estado de marionetes na mão do Mysterium. Aquilo que está para além do jogo-de-espelho da linguagem.

Elementos narrativos:

Para tudo que existe há necessariamente dois elementos originais fundidos: TEMPO-ESPAÇO!

E a partir daí a maravilha acontece!

Tudo é possível a partir de então. Podemos narrar onde, quando, quem, como! – A Circunstância tão querida por Stanislavski. E o velho russo tinha razão. O milagre narrativo acontece. Tudo pode brotar. As palavras corporificam-se tornando-se entes mentais. O milagre da linguagem!

A engenhosidade dos poetas levaram-nos ao labor da metrificação do que era narrado. Ou seja, compartimentar a narrativa, sem que esta perdesse sua capacidade de unidade. Novamente Stanislavski compreende muito bem e introduz dois novos conceitos: Acontecimento e Tempo-Ritmo. O primeiro criará pontos-vetores na narrativa, o segundo alterará o grau de intensidade destes pontos, dando origem a curva dramática.

Infelizmente os desenhos propostos na curva dramática não se alteram há muito tempo: peças teatrais, filmes, novelas, séries de tv, todas utilizam o mesmo modelo narrativo. Um modelo eficiente para o entretenimento, mas que pouca utilidade possui para o labor artístico. Assim os mitos enfraqueceram-se e perderam sua capacidade de palavra-corpo!

Mesmo Brecht, contrariando esta curva e instaurando a narrativa de fragmentos e exposição, a linha narrativa foi compartimentada por Acontecimentos que evocavam a palavra como apenas desencadeadora de um processo reflexivo determinado por aspectos sociais. Novamente a palavra-corporificada, a palavra-evocação sumiu da narrativa não alterando estados mentais, e permitindo o humanos reprogramar-se.

Artaud é o moderno que nos atenta a esta perda narrativa. E mostra que toda a metafísica em anos de filosofia e teologia danificaram as palavras elevando-as ao estado de entidades acima do Homem, não-físicas, meta-físicas, sendo que a palavra é tão física quanto nossos corpos. Possui propriedade físicas calculáveis: altura, intensidade, timbre, duração, ou seja, som capaz de produzir e reverberar em nossas mentes produzindo estados mentais outros, que não somente a capacidade cognitiva.

Os textos artaudianos foram tomados como grandes utopias de um louco preso em suas sessões de eletrochoque. Mas quando Grotowski permite-se encarar o mito novamente como força de um Mysterium e transforma a narrativa no jogo de apoteose e derrisão, o teatro e a dramaturgia como um todo começa a considerar os escritos de Artaud.

Abre-se o campo do Pós-dramático. Justamente quando a curva dramática clássica é re-significada, e começa haver rupturas no modo de narrar. Mas sou partidário da continuação existencial da narrativa. Onde há humanos há narrativa!

Hoje no Brasil temos a oportunidade de encontrar um trabalho extremamente de vanguarda produzido por Roberto Alvim. Este debruça-se perante o velho e inaugura o novo após muito estudar, e nos oferta uma nova dramaturgia intitulada pelo próprio autor de “Dramáticas do Transumano”. Onde encara a capacidade transitória da linguagem, e o efeito que esta causa no cérebro humano, ou melhor, em cada subjetividade que se põe em contato com seus espetáculo. E toda a potencialidade dramática só pode ser alcançada no ato teatral, em cena.

Nestes últimos momentos da história do teatro encontramos a potência da palavra-corpo existentes nos mitos. Porém, há quase que um menosprezo ao ato de narrar!

Base da Linguagem:

Como já dito, a base da arquitetura linguística do ser humano está no mito fundador. O mito é a narrativa que origina a compreensão de algo ainda não explanado pela mente humana, resolvendo momentaneamente a curiosidade sobre sentimentos, ações, eventos, entre outros. Ora, o que importa aqui é o termo narrativa. Mito = Narrativa!

Mas os mitos fundadores, estas narrativas fundadoras, programaram-nos do modo que podemos nos reconhecer como Homens do século XXI. Mas ainda julgamos necessário encontrar uma outra possibilidade de humanidade que resolva momentaneamente a curiosidade sobre sentimentos outros, ações outras, eventos outros, e assim vai…

Surgem sentenças petrificadas:
Há narrativas demais que se repetem em forma e conteúdo;
Há modelos demais, e todos já estão repetidos;
Há a sensação de que o Homem não alterou-se como espécie dotada de linguagem;
Há estabelecimentos morais que não dão conta da vida interpessoal, até mesmo subjetiva, causando neuroses, doenças sociais e pessoais;
Esta mesma moral bloqueia a capacidade humana presente na linguagem de alargar a experiência cósmica;
Estamos presos em nossas estruturas meramente pessoais e sociais, subjetivas e intersubjetivas;
Mas ainda paira na mente humana fragmentos linguísticos para além das experiências comuns, onde habita o que apenas conseguimos nomear como sendo o Mysterium.

Neste contexto aterrador surge o que aqui propomos como Farrapo Mítico. Este termo é forjado com base na ação de narrar. Uma verdadeira dramaturgia nova rasgaria o que é velho e após a embriaguez do ato começaria a reposicionar elementos-chaves, e experimentar e experienciar os efeitos que estes reposicionamentos são capaz de produzir no humano.

Assim, o teatro seria o local de encontrar o velho e produzir o novo, num ato de hibridismo. Construiríamos novas bases linguísticas capazes de alargar a experiência humana, não somente social e/ou subjetiva, mas sim, cósmica.

Ator, o Sacro-Ofício:

Com as paredes do teatro erguidas devemos por em cena essas utopias dramáticas-narrativas. Mas ainda falta-nos quem irá realizar. Devemos pensar a função do ator neste contexto novo-velho.

O ator aqui é o individuo que deverá doar-se por completo. O ser humano, assim como Yuri Gagarin, a viajar pelo espaço pré-visto, porém, desconhecido.

Deverá então, sacrificar sua subjetividade para adentrar as portas do Velho e do Novo, da vida e da morte. Estas duas portas deverá ser o seu objetivo Cruel. Mas é justamente em sua subjetividade que habitam as chaves destas portas.

Uma vez iniciado este intento e trabalhado arduamente na desintegração de si, estará apto a recriar este processo perante outros humanos.

A encenação então, aparece como um ritual de encontro, onde a narrativa em farrapos míticos faz com que o presente viva experiências subjetivas intensas, e que ao término do ritual estejam todos amalgamados na condição humana de experiências individuais intensas ainda não vividas por seres humanos, até então, dando origem a um novo espaço humano de conhecimento e experiência.

O ator tem por tanto o ofício sacro de expandir a experiencia humana, sendo que em Laboratório deverá reproduzir em si estes mecanismo em sacrifício, sacro-ofício.

Ethos, à procura dos outros em si:

Isto requer uma postura ética do ator. Não moral! Ética. É um caminho a ser trilhado, mas para trilha-lo é necessário dar o primeiro passo à procura dos outros, do universo, do cosmos, em si. E neste momento de investigação deverá romper com a noção do EU edificado socialmente, afetuosamente, cognitivamente. E este é o sacrifício.

Este ethos é o superobjetivo do ator em sua existência como artista. E é com ele que poderá irmanar-se com todos os outros atores, com todo o público, com a humanidade inteira, em busca do mysterium que mora atrás do jogo-de-espelhos da linguagem. Para empurrar este espelho para além, e ampliar a experiência humana devemos vasculhar o velho, ousar proclamar o novo, e experimentar a delícia de ser uno e ser versificado.

Universo.

Ham[let] – Deixa-me ser éter, carne e ossos

por Isadora Aragão

“Mostra-me como vês Hamlet e eu te direi quem és.”
 Ludwick Flaszen
Esta frase bastante provocativa de Flaszen esta inserida num ensaio intitulado “Hamlet no Laboratório Teatral”, em que o autor tenta nos transmitir as dimensões do contato de Grotowski e seus atores com o texto de Shakespeare. A partir deste ensaio, percebemos que devido ao modo com qual o grupo vinha trabalhando houve uma verdadeira necessidade de se travar um diálogo entre a Inglaterra do Século XVII e a Polônia do Século XX. Isso porque, para eles só pareceu justificável retomar Hamlet se fosse para tratar da realidade que os cercava.
No entanto, isso não significa dizer que “modernizar” o plano de fundo da história tenha sido a maior preocupação do diretor. Pelo contrário, sua ida a este texto se deu muito mais como um estudo do que como pretensão de representação para um público e Hamlet, devido a seu caráter universal, foi para Grotowski uma sólida ponte para àquilo que realmente desejava: o desnudar dos atores diante de si mesmos.
Vemos então, o jovem Hamlet diante do espectro de seu pai e notamos que nesta figura reside para ele tudo que há de mais nobre, bom e belo.  E de tão sublime, se faz etérea essa imagem, que não é outra senão a da mais pura fé. Mas para o que olha Hamlet? Para seu pai? Ou para si mesmo? Em quem mora, enfim, a coragem pela qual ele tanto tem admiração? Aí esta a graça e genialidade desse jogo espectral, pois aquilo que Hamlet vê fora de si é a primeira imagem que faz de si mesmo. E esta para Grotowski, poderia ser considerada uma primeira porta aberta pelo ator para adentrar-se.
Então, tomado pelo calor do contato com o próprio espírito é que o jovem Hamlet vai descobrindo-se também carne, já que o desejo de perder-se em si mesmo para se reencontrar fora despertado. Desse modo, a falsa loucura foi a “desculpa” que precisava para poder ser cada vez mais impulsivo e visceral, para que tudo nele assumisse, sem o peso da culpa, formas de violência. Nesse sentido, vale lembrar que, até o amor que tinha por Ofélia acabou se desdobrando em ofensas e que foi sob o comando dessa força que ele elaborou a cena dos atores para confrontar seu tio.
Porém, quanto mais profundamente Hamlet adentra a própria carne, mais dela se afasta para se aproximar da espinha dorsal da existência humana. Foi assim que, diante de uma cova, tomando na mão um crânio humano pode enxergar-se também perecível. E isto significa que a busca por si mesmo, através deste adentrar-se, resultou no encontro com todos os homens.
Somos espírito, carne e ossos. Essa é nossa tripla condição Hamlet-humana. Basta que desejemos nos rasgar e todo homem será o uni-verso.

E se restar a pergunta: Que é Hamlet? Hamlet é isto que nos pergunta o que Hamlet é.

Medeia: Culpa de quem?

por Isadora Aragão

Quando Medeia lançou mão de todos os seus recursos para que Jasão voltasse vitorioso à Grécia, tinha como motivação a perspectiva de casar-se com o homem que amava. Por isso foi que se doou por completo, fazendo uso de toda sua sapiência em favor das lutas de um estrangeiro.  De modo que, se não fosse de sua vontade desposar Jasão, jamais teria sido capaz de cometer danos à seus próprios familiares e pátria.
Assim, não erramos quando dizemos que em tudo que esta mulher fez não houve um só ato desinteressado, mas que, pelo contrário, todos eles visaram uma mesma coisa: um juramento feito perante os Deuses que lhe desse direito ao mesmo tempo a um leito e a uma pátria. E foi exatamente o ela que conquistou.
No entanto, tal juramento, mesmo tendo sido lançado aos ouvidos dos Deuses, saíra de boca humana e, por isso, continha algo de contraditório, falho e imperfeito. Então, quando a lógica desafiou Jasão, ele não titubeou em fazer uso da razão para conseguir o que queria, mesmo que isso lhe custasse a ruptura de um juramento sagrado e a separação da família já erigida. E foi assim que ele, para casar-se com a filha do Rei Creonte, deixou Medeia não só sem esposo, mas também sem pátria.
Então, podemos nos perguntar: é possível ter pena de Medeia?
Num primeiro momento, podemos responder que sim e nos deixar levar pelos lamentos colocados na boca da personagem por Eurípedes.  Afinal, como não ter pena de uma mulher que se doou completamente em nome do sucesso de um homem que a retribui com o abandono e desterro?
No entanto, nos contentando com tal leitura deixamos de lado o fato de que a própria Medeia não desejaria ser objeto de pena. Pois, caso aceitasse essa condição teria se resignado diante do casamento de Jasão, viveria com o apoio moral dos habitantes de Corinto e acabaria por felicitar a abastança real de que poderiam beneficiar-se também seus filhos.
Entretanto, a ela não interessava nenhuma fortuna que proviesse de seu sofrimento, tampouco aceitaria ser humilhada perante todos, convivendo pacificamente com o triunfo de seus inimigos. Assim,  vingou-se para mostrar que era capaz de causar o mesmo sofrimento que haviam lhe causado e nesse sentido, não lhe bastou que Jasão fosse considerado culpado por todos. Pelo contrário, foi preciso fazer com que ele passasse pela mesma sensação de perda que ela passara e foi por isso que lhe tirou a futura esposa, para que também ele padecesse sobre um leito vazio.
A vingança é ainda mais cruel nessa versão da história, já que de acordo com ela Medeia matou  também os próprios filhos, afirmando não querer deixa-los a mercê de estranhos que vingariam neles o assassinato do Rei e sua filha.  No entanto, não podemos deixar passar que se para ela o culpado por todas as atrocidades que se vira  obrigada a cometer até então era Jasão, não se sentiria culpada pela morte dos próprios filhos. Afinal, Jasão iniciara toda a catástrofe, rompendo o juramento que fizera. Dar cabo de sua prole significava somente levar às últimas consequências aquilo que já estava começado, desligar-se de vez do passado para poder seguir em busca de uma novo leito e de uma nova Pátria, já prometidos por Egeu.
Portanto, se não nos cabe considerar Medeia uma coitada, não nos cabe também julga-la como um monstro por matar os próprios filhos. Ela ocupa simplesmente esse lugar da mulher capaz de privilegiar seus interesses, aproximando-se do homem representado em Jasão que abandona o leito da esposa para realizar anseios pessoais, ao invés de manter o juramento aos Deuses.
 Na verdade, o que nos confunde é que ambos são movidos quase que por uma mesma força, ambos são capazes de abandonar antigos juramentos e seguir adiante em nome do que desejam e levar as decisões às últimas consequências. E então, de quem é a culpa? Dos desejos humanos! Mas, que foi feito da vontade dos Deuses?

Da Mãe à Mãe

por Isadora Aragão
 
Do nascimento à morte
 

Uma mulher se parte no parto. Despede-se com dificuldade da parte de si que se transmuta num ser novo.  Rompem-se os laços, corta-se o fio e nascem mãe e filho. Nunca mais ela será a mesma. Cindiu-se e algo sempre lhe faltará. Quanto ao filho, apartado da mãe, tampouco encontrará abrigo, seguirá por caminhos tortos numa busca incessante pela completude inicial que se perdeu. Perdido ele permanece, num tatear febril e insistente até o corpo pesar e é com pesar que ele decide parar. Seus pés, servos mais dedicados em vida, rebelam-se e exigem descanso. O homem teima, mas por mais que o faça não resiste à tentação. É preciso entregar-se, usar o receptáculo que, desde o dia do nascimento, cavou para si mesmo no ventre do mundo.

Da morte ao nascimento
 
Para que Édipo não errasse, Jocasta cometeu o mais infeliz de seus erros: tentou imobilizar seu filho, grampear-lhe os pés e atira-lo nos braços da morte. Porém, o que ela não percebeu é que neste ato, concentrada em desfazer a funesta trama tecida pelos Deuses, se esquecera de cortar o mais íntimo fio que a unia ao filho: o fio da vida. Assim, despediu-se de sua criança, pensando driblar o destino ao usar a morte a seu favor e não se deu conta de que, devido à ligação entre eles, seu plano falhara. Pois, Édipo às portas do Hades fora impedido de prosseguir: Como poderia morrer aquele que não nascera?
                Levado então a Corinto, Édipo viveu a ilusão de ter nascido noutros pais, noutra pátria e o abrigo oferecido por Mérope e Políbio por alguns anos impediu que a questão de sua origem tivesse relevância. No entanto, os Deuses eram ardilosos e a paz conferida a Édipo, temporária. Portanto, não demorou para que sussurros jogados ao vento chegassem à seus ouvidos e colocassem em cheque a solidez das paredes do lar em que ele vivera até então. Um anúncio grotesco fora proferido e nada restou a Édipo a não ser abandonar Corinto.
Sem que percebesse, eram as amarras insistentes e invisíveis da terra natal que o levavam de volta ao berço e o sinuoso caminho a ser percorrido por esse homem que desde o princípio carregara as marcas da incerteza nos pés acabou por desembocar na decisiva encruzilhada do Eu.  Ali, seu verdadeiro pai, Laio, olhou-o nos olhos e disse: “Reconhece-me ou devora-me”. Édipo o devorou. E assim, parte da profecia se cumpriu, mas o enigma de seu nascimento se perpetuou. A Esfinge, por outro lado, se interpôs e anunciou: Decifra-me ou devoro-te. Édipo a decifrou e um novo passo foi dado em direção ao cumprimento de sua sina atroz.
A ascensão ao trono de Tebas o levou a desposar a mãe Jocasta. Afinal, ao novo Rei era necessário que gozasse do leito de sua nova casa, que percorresse os caminhos obscuros e desconhecidos de sua dona, que os descobrisse e adentrasse sem pudor. Como, em tal circunstância, poderia Édipo saber-se desafortunado? Como poderia suspeitar de que não tendo recebido leite do seio materno, deleitava-se agora em semear o ventre da mãe que desconhecia?
Foi assim que, iludidos, mãe e filho enroscaram-se na confusão de seu destino, como se ambos, num transe, tivessem perdido a consciência dos limites da vida, destruindo as barreiras que separavam seus corpos. O ventre de Jocasta havia engolido o próprio mundo, tocando assim, o caos da existência.
A completude encontrada poderia ter se perpetuado caso não houvesse sido erigida sobre uma realidade às avessas e o brado de uma cidade amaldiçoada não viesse para despertar os amantes de seu tão longo sono. Mas era preciso vingar Laio, era preciso salvar Tebas e para isso desterrar o culpado por sua morte. Era preciso desvelar a verdade, era preciso desembaraçar os fios da trama, era preciso que Édipo nascesse.
Jocasta, tendo enfim tomado consciência de seu erro, optou por partir-se. Enlaçou-se definitivamente ao fio de carne e sangue que se esquecera de cortar no princípio e deixou-se enforcar. “Dê-se a luz”, ela disse. A luz se deu. Édipo cegou.

Os demônios de Hamlet

por Filipe Rossi

Há um tempo tive uma experiência diabólica:
Deitado em minha cama dormindo, acordo repentinamente, abro os olhos e deparo-me com um demônio. Todo vestido de negro, uma capa que lhe tampava o rosto. Podem duvidar da narrativa. Eu também duvido.  Não creio em ocultismo. Mas esta experiência foi real, e a atribuo a um fenômeno de linguagem – uma narrativa criada pelo exercício de minha mente enquanto repousava. Isto acontece praticamente todos os dias com todos. Mas no meu caso o que chamou a atenção foi a experiência com um demônio.
Este demônio me disse coisas. Lógico que não ouvi sua voz, não ouvi o fenômeno físico da voz, mas ouvi certo número de elementos linguísticos fabricado pela minha própria mente atribuído a este espectro, também fabricado por minha cabeça.
Caso o leitor seja afeito à filosofia já deve ter ouvido falar sobre as vozes que Sócrates ouvia, vozes que o dissuadia em momentos cruciais de sua vida. O próprio Jung frequentemente tinha o que chamou de sonhos premonitórios. Creio que minha experiência tenha sido deste campo psíquico. Mas também sou cético em relação a psicanálise. Pois creio fielmente no poder da linguagem. Ela tudo fabrica! E vivemos sim na REALIDADE da linguagem. Tudo é real…
Tudo o que ouvi daquele demônio naquele dia se cumpriu. E enquanto falava comecei a ver seu rosto com nitidez, e assemelhava-se com uma pessoa próxima, familiar. E de fato suas palavras despertaram como acontecimento.
Creio que esta deva ser a experiência vivida por Hamlet no início da peça. Ora, mas outras personagens também viram o Fantasma do pai de Hamlet. Porém Shakespeare utilizava um esquema em suas peças: Só possui relevância aquele que fala em verso; os prosadores são “prosaicos”, não afetam a cena profundamente, ela só ganha relevância quando alguém ‘nobre’ é afetado pelo acontecimento. Tanto é notório este esquema que Francisco, Bernardo e Marcelo não aparecem nunca mais na peça, porém Horácio que possui o sangue um pouco mais nobre, continuará sendo a voz guia de Hamlet, e a figura incumbida de narrar a outros ouvidos a história deste príncipe, depois de sua morte, no quinto ato.
Horácio é a própria figura de Shakespeare arquitetonicamente posta ao lado do príncipe, e também testemunha ocular da presença do Fantasma. Os guardas não sabemos mais nada durante o texto. Mas Horácio-Shakespeare cria em nós a presentificação do Fantasma, não permitindo que nós leitores-espectadores julguemos ser obra da loucura fingida e vivida por Hamlet.
A presença do Fantasma trata-se da personificação linguística dos demônios de Hamlet. E não trata-se de psicanálise. É antes a desconfiança de Hamlet sobre os acontecimentos. Hamlet fala em verso, é nobre… Poucas palavras reúnem a força existencial… Um pai morto sem grandes explicações; um tio que toma para si o trono e a rainha, num curto período de tempo… É de se estranhar! A mente de Hamlet organiza-se de modo a erguer a figura do Espectro de seu pai. E é claro que este espectro dirá tudo que Hamlet já sabe, porém teme a veracidade. E seu temor transpassa a peça. Ele não tem provas concretas sobre o veredito que o demônio forjado por ele vos deu. E mesmo que considere esta hipótese deverá tratar de justificar todos os seus atos através da fabricação de um demônio que o permita agir.
É a voz demoníaca que ordena Ofélia conduzir-se para um convento. É uma voz demoníaca que diz haver ratos atrás da tapeçaria enquanto golpeia-os e mata Polônio. É uma voz demoníaca que obriga Gertrudes olhar o retrato do Rei de ontem e do Rei de hoje. E neste momento, cansado de afligir os outros, fabrica novamente o demônio-fantasma de seu pai o dissuadindo de agredir sua mãe. E agora é cada vez mais necessário fingir loucura. Até o ponto em que loucura e não-loucura seja uma linha extremamente tênue.
É necessário ainda criar um mecanismo físico que impossibilite a elaboração linguística de novos demônios. É necessário agir. Sumir por um tempo. Pensar sobre a condição da vida e da morte. É necessário obrigar as pessoas ouvirem a existência em versos. Hamlet cura sua loucura fingida, e sua loucura sentida. Ele quer apenas agir, mesmo que a ação não denote vingança. Que ela seja apenas ordem para que os versos não quebrem as linhas e continuamente tornam-se prosa.
Assim, aceita o convite do Rei pela boca de Osric. É necessário entreter-se não permitir espaço para que os demônios apareçam. E agora Hamlet pode matar, pois foi ameaçado e impelido a tal evento. Laertes, filho de Polônio, irmão de Ofélia que enlouquecera, dá a Hamlet o motivo necessário para obra. Porém, Hamlet vinga a morte do pai como quis o demônio? Ou vinga a morte da mãe, envenenada pelo Rei, que tinha como intento assassiná-lo?!
Demônios são seres linguísticos que acreditamos, mas não possuem a força da persuasão. A ação é crível e persuasiva.
Por isso, nunca mais consegui dormir de barriga pra cima!

Μήδεια

por Filipe Rossi

Uma Mulher. Uma Bruxa. Não no sentido medieval, e sim antigo.

Uma Mulher que possui ascendência divina, dons misteriosos, e sagacidade para realizar o que bem deseja. Porém, mesmo sendo uma semi-deusa, os deuses “legítimos” também gostam de brincar. E ela é enfeitiçada pelos dons mais poderosos de Afrodite. E este amor traz a desgraça de todos os Homens que de algum modo aparecem em seu caminho.
O feitiço de Afrodite, muito bem conhecido por todos os viventes, faz com que Medeia encontre Jasão. Este homem tornaria-se vítima do pai da mulher. Mas Medeia o faz escapar de todas as armadilhas. O mesmo ocorre quando o irmão de Medeia põe-se no caminho. Ela o esquarteja e espalha os pedaços do corpo para que seu pai os recolha e dê tempo de fugir com Jasão e os Argonautas.
A cada caminho um feitiço de Medeia. E as barreiras caem…
Até que o fim do enlace aponte Corinto!
É nesta terra que Medeia sentir-se-á como uma simples mulher, como nunca em sua vida toda. Medeia era Mulher, e não mulher. Era uma semi-deusa que organizava sua vida e daqueles que a circundavam como cabe à um deus: Manipulando, arregimentando, dando ordens ao tempo e aos temperos. E ali, naquela terra estrangeira sente-se manipulada, organizada conforme outra lógica. Agora são Homens que movimentam sua vida, sua rotina e exigem que todo seu ímpeto empalideça até abrandar o fogo de seu espírito e de suas mãos feiticeiras.
Esta Mulher sofre, e outras mulheres diante dela têm piedade. Acreditam que Medeia fora driblada pelos homens, como toda mulher o é. Não notam que seus lamentos já fazem parte da ascensão de seu domínio sobre os mortais que julgam ter direitos e forças até mesmo sobre os semi-deuses. Medeia lamenta-se, chora, grita, amaldiçoa, todo isso é apenas ingrediente para a demonstração de seus dons.
Mas talvez algumas gotas de lágrimas escapem a mais, pois sabe que deverá colocar no caldeirão da desmesura a pele macia dos filhos daquele homem à quem fez vitorioso. Somente o sangue inocente dá conta da verdadeira transformação!
Ela sabe que deveria errar por outras terras depois de cumprir seu intento. E que não encontraria em lugar nenhum boa hospedagem. À não ser que um outro Homem cruzasse seu caminho. Um Homem digno da letra maiúscula. E este Homem apareceu. Egeu sentiu-se apiedado e forneceu a esperança que Medeia necessitava. Mas já o conduziu para o Hall dos arregimentados quando o obriga tecer palavras em tom de juramento. Ele jurou! E o feitiço recebia um dos melhores temperos.
Medeia dissimulou loucura, como agora dissimula pensamentos sãos. Oferece presentes dignos da realeza do lugar. E o banquete do horror aos olhos de Jasão estava servido.
Faltava os manjares! E estes vieram em forma de crianças sem espírito.
Jasão depara-se com sua fraqueza. Sabe que não teria chegado longe sem os dons de Medeia. Mas ela resolveu retirar o seu auxílio ao homem, que perde agora sua letra maiúscula.
Os filhos voam junto da Mulher, agarrados à máquina divina, que vem ao auxílio dos fortes. Some dos olhos do homem. Fica na caverna de todos nós um M maiúsculo de Medeia, de Mãe, de Morte, de Mácula… de Mulher!

Medeia: Tragédia ou Drama?

por Filipe Rossi

Quando leio Medeia de Eurípedes fico sempre com uma sensação estranha: Li, realmente, uma tragedia?
Considero-me um bom leitor de Nietzsche. Li quase todos. Li os primeiros escritos deste filósofo, e estes foram exatamente sobre a cultura helênica, sobre os principais filósofos da época trágica dos gregos. E é de enorme deleite quando fala sobre Sócrates, e aqueles que ouviram Sócrates falar. Eurípedes foi um desses…
Nietzsche o acusa de por fim ao teatro grego. A por fim na tragédia grega. Assim, sinto-me influenciado de alguma forma com este pensamento. Mas caso analisemos por este viés é inegável a ruptura que este tragediógrafo causou na cultura helênica e humana em geral.
Lancemos uma comparação mesquinha entre Medeia e Édipo Rei. O segundo, considerado por Aristóteles como a “Tragédia Perfeita” possui uma estrutura precisa, como bem analisou o filósofo, quanto Medeia possui sua estrutura, porém é titubeante. As coisas acontecem por acumulo e ficam por isso mesmo. Como se o escritor quisesse causar horror no público através da angústia continua, e não através da desgraça do herói. Mas afinal, quem é o herói em Medeia. Medeia? Mas ela encerra a obra vitoriosa e alando-se através de um deus-máquina?!
Em Eurípedes o que vale é a psique do herói, e não seus atos. E esta escolha dramatúrgica não tem nada a ver com os helenos. Talvez a influência de Sócrates e Platão à Eurípedes tenha surtido efeito. Então como nos narra o próprio Platão em “Apologia de Sócrates” que foi morto por sua sentença prever a “corrupção da juventude”, está corretíssima. O jovem Eurípedes fora corrompido.
Em Medeia de Eurípedes podemos encontrar o que viria a ser a culpa cristã. Sim, pois é justamente isto que Medeia quer suscitar em Jasão. Se pensarmos sobre o efeito da catarse a obra surge como exemplo para quem? Homem ou Mulher?! Caso pensemos nos Homens o efeito é o sentimento da culpa. Caso seja a Mulher serve de exemplo para o tempero da desmesura, do ódio, da vingança. Ou seja, a pacificação do espírito feminino tido como “destemperado”. Ambas as leituras não correspondem com a personalidade grega que chegou até nós através de outras obras trágicas, líricas, pensamentos e outros.
Caso este argumento tenha fundamento Eurípedes inaugura com Medeia o drama. Uma trama psicológica que nos leva a um único ato: Dar cabo de seus filhos!
Talvez estes filhos sejam a juventude grega, e que o deus-máquina nos atire nas nuvens e quando pisarmos terra firme haja a seguinte inscrição gravada na pedra: Welcome Roma!